São Paulo, sábado, 24 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Violências

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nas prateleiras da farmácia jurídica não há remédio adequado para tratar da violência social.
Neste momento em que se instala nos meios de comunicação a inspirada idéia de que é preciso combater a violência, o trabalhador do direito constata, aflito, a fraqueza dos instrumentos postos à sua disposição para ajudar o desenvolvimento desse bom combate.
Há espécies diferentes de violência. Na sua forma clássica é caracterizada pelo abuso da força, física, numérica ou de armas. O violento vem geralmente referido nesse sentido. Utiliza a força para impor seu domínio. Contra esse tipo até que o direito oferece receitas válidas, embora nem sempre úteis. O violento pode ser individualizado, identificado e, ultrapassando os limites legais, pode ser punido. No curso da semana, em São Caetano, uma jovem foi vítima da brutalidade maligna de assaltante a mão armada, pagando com a vida o esforço de impedir que seu carro fosse roubado. Espera-se que o direito funcione para punir o crime.
Há também a violência dos agentes do Estado. Atuam sob a proteção da máquina estatal, que se fecha sobre si mesma, autoprotetora, sempre que eles ferem a lei. Entre os vários e tristes exemplos da semana, aproveito um que é menos espetaculoso, mas -e talvez por isso- mais expressivo. Policiais prenderam um piloto da Varig e retardaram o vôo durante horas, porque somente aceitou transportá-los se deixassem suas armas na cabine de comando. Mostraram ânimo violento, prometendo furar a tiros os pneus do Boeing se o comandante tentasse decolar sem eles. O rigor da apuração é indispensável na verificação dos fatos e na punição dos culpados.
Uma das consequências da urbanização velocíssima na segunda metade do século 20 (80% da população vive na cidade ou no seu entorno) gerou violência diversa dos dois tipos precedentes, mas muito mais séria. Nela nem é viável identificar os culpados nem determinar com clareza os paradigmas de comportamento tolerável. No rol dos culpados está além do Poder Público, quem, tendo bons meios de vida, se omite ao dever de assegurar aos demais um mínimo de sobrevivência com dignidade sob um teto. Nos dois primeiros casos há responsabilidades individuais. Todos somos, porém, responsáveis pela violência social, cuja reciclagem ininterrupta corresponde a uma espécie de cornucópia infernal derramando novos incentivos para mais violência. Os violentos do cenário social nem sequer precisam abusar da força física.
Os atos da violência, geometricamente crescentes a contar dos anos 50, se entremostram em pormenores insignificantes, que, de tão repetidos, chegam a escapar à percepção comum.
O motorista que pára sobre a faixa de pedestres, no trânsito congestionado, talvez seja o exemplo mais característico. O motorista é identificável. Todavia, no mal da violência repetida -para a qual o direito tem remédios formais, mas substancialmente ineficazes-, a afronta ao direito passa a ser coisa comum, tolerada, encarada com indiferença até por suas vítimas, em novo mal a ser combatido.
Tendemos a reclamar, com carradas de razão, adequada proteção contra a criminalidade violenta, exigindo eficiência do Estado nos mecanismos de amparo à cidadania.
Não manifestamos, porém, o mesmo empenho contra os outros tipos.
Enquanto essa atitude continuar, fracassaremos na luta pela liberação da violência.

Texto Anterior: Imagem e dano moral
Próximo Texto: Matador já havia comprado próprio caixão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.