São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sábia e jovem, cantora paira acima do tempo

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REDAÇÃO

A mídia brasileira é pródiga em, de tempos em tempos, fartar-se em pajelanças que vêm apresentar futuros talentos fermentados em condições a princípio desfavoráveis. Aconteceu antes com nomes como Edith do Prato, Mauro e Quitéria, Selma do Coco. Acontece agora com Virginia Rodrigues.
Tais talentos, às vezes legitimados por caciques do porte de Caetano Veloso, nem sempre estão preparados para o cerco da fama súbita. Arriscam-se, desde o início, a estarem fadados ao ostracismo logo adiante. Alimentam, enquanto duram, o mercado e a sede da mídia por assuntos da hora e por descobertas sensacionais.
Posto isso, há que se dizer: Virginia Rodrigues é descoberta sensacional destes anos 90. Ainda que venha a se tornar apenas mais uma vítima dos leões de cá e de lá, é dona, em 1997, de disco como há muito não se ouvia no Brasil.
Seu timbre quase lírico, grave e arraigadamente negro traz traço ímpar à história vocal da MPB: solto em 97, paira suspenso no tempo, alienado de quaisquer tentativas de catalogação cronológica.
O disco "Sol Negro" parece vir dos anos 30 (Aracy de Almeida?), dos 50 (Marlene?), dos 60 (Clementina de Jesus?), dos 70 (Gal Costa?), dos 90 (Mônica Salmaso?). A nenhuma dessas eras se encaixa com perfeição. Cabe portanto a todas elas, indistintamente.
Não é pequena a qualidade de ser atemporal. Aí entra a interferência de Caetano Veloso, descobridor de sua existência aos olhos da mídia.
É ele quem imprime à perenidade de Virginia uma marca pré-tropicalista -seu disco poderia ser o de uma cantora de protesto sessentista, de apego radical às raízes nacionais e de quando ainda não havia Gal Costa ou Rita Lee.
Aí Caetano define, de novo, seu papel no cenário musical do país: o de guardião zeloso, de asas abertas sobre as qualidades que ele inventou ao erguer a bandeira tropicalista. Virginia, talento que ele apresenta, pode ser sorvida como antídoto à neotropicália de Marisa Monte, verdadeira e serena que é.
Sua voz transforma em eternas canções de todas as épocas: o samba histórico "Adeus Batucada" convive com a contemporaneidade de "Negrume da Noite", do bloco Ilê Ayé, em dois dos momentos mais intensos do CD. Em outro, "Nobreza", Virginia recupera cantiga de amigo escrita por Djavan para Paulinho da Viola, que nunca a gravou.
"Terra Seca", de Ary Barroso, pula as décadas para parecer um afro-samba de Baden e Vinicius, pré-tropicália de qualquer forma; "Sol Negro", canção de fato pré-tropicalista de Caetano, pula os anos e vira Clube da Esquina, no dueto dionisíaco com Milton Nascimento.
O talento possível nos 90 só viria de valores que antecedem -logo não tensionam- aquele que se coloca como último momento de explosão criativa concentrada na MPB.
Mas Virginia, jovem e sábia, dá o bote e bate asas rumo à eternidade: sua voz e sua identidade pagãs, terrenas, carnais, sobrepujam interferências como os arranjos, belos, mas muito próximos à fase "Fina Estampa" de Caetano. Ela canta da forma mais despojada e bela que se tem podido ouvir, reinstalando a sofisticação e apostando, afinal, no futuro. Que a mídia nunca feche os sete buracos de sua cabeça a ela.
(PAS)

Disco: Sol Negro
Artista: Virginia Rodrigues
Lançamento: Natasha
Quanto: R$ 18, em média

Texto Anterior: Descubra Virginia Rodrigues, a novidade
Próximo Texto: Coluna Joyce Pascowitch
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.