São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 1997
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O senhor das lágrimas humanas

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Foi Thibaudet quem observou, a respeito de Victor Hugo, que o autor de "Os Miseráveis" tinha mais "situation" que "présence" no panorama da literatura não só francesa como universal. Até hoje, os críticos são obrigados a acentuar esta dicotomia crítica em relação ao homem que encheu tão largo e brilhante período da cultura humana. Mesmo aqueles críticos que lhe fazem restrições, como Otto Maria Carpeaux, são obrigados a admitir que "Victor Hugo é um colosso que desafia as definições".
Foi -e essa é uma constatação universal- o maior nome de seu tempo no campo das letras. Contemporâneo de Balzac, tinha mais prestígio e mais público do que o autor de "A Comédia Humana". E, como poeta, sua popularidade era, disparada, não apenas a maior na França mas em todo o mundo. Para muitos, ele ficaria sobretudo como "o poeta", mais ou menos na posição em que a posteridade colocou Dante como "o altíssimo poeta". Para todos os efeitos, segundo André Gide, ele havia feito "os mais belos versos da língua francesa".
Era muito, mas não era tudo. Inquieto, honesto, turbulento, um homem ao gosto de sua época, Victor Hugo adotaria a expressão barroca em sua linguagem, tanto no verso como na prosa. Daí que muitos já o consideravam anacrônico em seu próprio tempo. Curiosamente, ele estaria sintonizado com os problemas de sua época, engajado naquela corrente que constituiu o veio mais nobre do romantismo francês que o lugar-comum remonta a Michelet. Já não era mais aquele romantismo placidamente católico e conservador que dominara a França durante tantos anos, mas a conscientização progressiva e progressista que transformaria Victor Hugo no "grande plebeu" das letras francesas.
Seu barroquismo (que alguns preferem classificar de "medievalismo"), seu goticismo ou seu gongorismo, nada têm de reacionário. Não é um egresso saudoso da Idade Média, pitorescamente simpático, como Walter Scott ou Manzoni. Nem pagou tributo à Idade Média feudal-católica dos românticos reacionários. Victor Hugo conseguiu imprimir ao romantismo -e nisso só teve a emulação de Michelet -um caráter progressista que transformaria o movimento num dos mais importantes e fecundos de toda a história literária.
Complexa a abordagem de sua obra. Poeta, deve-se a Victor Hugo a grandeza e a distorção de toda uma mecânica do verso que até hoje produz remanescentes. Seus poemas, excessivamente belos, não raro desviados para o panfleto político ou social, são o modelo mais característico de um tipo de poesia tornado clássico, mas logo superado pelas correntes que se sucederam na própria França e que juntaram Mallarmé, Baudelaire, Rimbaud e Verlaine num nicho estanque.
Assim, paradoxalmente, à medida em que Victor Hugo se torna o grande poeta de toda uma época, torna-se também o grande superado. Apesar disso, na França e fora dela, seus versos até hoje são lembrados e, com razão ou sem ela, amados. Representou sozinho, e dentro da poesia universal, uma época inteira, uma espécie de Idade Média completa, com nascimento, apogeu e declínio definidos e definitivos.
Transcendendo à poesia, Victor Hugo foi também romancista e político praticante. Teve soberba atuação contra o golpe de Luís Napoleão, tornando-se no mais brilhante adversário da ditadura instalada a 2 de dezembro de 1851. Membro da Assembléia Francesa, não se submeteu à violência: foi para a rua, a faixa tricolor ao peito, defender o seu mandato popular em plena barricada, enfrentando à bala os soldados do ditador. Isso lhe valeu perseguições e o exílio que entrou na lenda e na história de sua vida. Mais uma vez repetia-se a tradição francesa que guilhotinara o seu melhor poeta da Revolução (André de Chénier) e exilara seu melhor burguês (Victor Hugo).
Em compensação, foi no exílio que ele teve motivo e tempo para se dedicar àquela que seria a sua obra maior no domínio da prosa: "Os Miseráveis". Já não seria uma pintura, mas um retrato. O exótico e o histórico seriam substituídos pelo realismo e pela história. Em intenção, o livro prometia ser grande. Na prática, tornou-se grande demais, com aquela grandeza suspeita que muitos chegam a atribuir a Shakespeare, "o oceano que se atravessa com água pelas canelas".
Como romancista, Victor Hugo sofreu do mesmo processo crítico por que passou o poeta Victor Hugo. Criticamente, a revisão histórica foi-lhe fatal. Seu prestígio diminuiu diante de autores que vieram logo depois. Para todos os efeitos, o grande romancista de seu tempo ficou sendo Balzac, que morrera antes dele.
Hoje, suas longas digressões e brutais coincidências são tidas como arte menor. Mas nenhum escritor o ultrapassaria na carga emotiva da palavra escrita. O sineiro de Notre Dame, que ele criou em 1831, século e meio depois seria desenho animado de Walt Disney. Não foi sem razão que Tennyson o chamou de "Senhor das lágrimas humanas".

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