São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 1997
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O país refém do "Senhor X"

CANDIDO MENDES

O escândalo da compra dos votos dos deputados acreanos não evidencia apenas um extraordinário feito jornalístico. Implica um repto ao aperfeiçoamento de nossas instituições democráticas diante do que, agora, se transformou numa denúncia interrompida, de implicação crítica para a legitimidade da votação de emenda constitucional.
O que está em causa é a insinuação de que existam outras fitas e que essas contenham mais fatos além dos que incriminaram a bancada federal do Acre. As declarações do jornalista Fernando Rodrigues (Folha, 24/5) reiteram o conhecimento, pelo profissional, de quem teve as vozes gravadas e "do que é dito" nas ditas fitas.
O direito à informação pela população, tanto como pelo Estado, do teor de tais gravações não se pode descartar pela chamada "exceção de anonimato", em bem da presunção da confiabilidade do revelável à fonte jornalística. Acautela-se, neste entendimento, o canal por sobre o do conteúdo de verdade, de crucial interesse público.
O que está em causa é o dever postulado pelo Código Penal de levar à autoridade conhecimento de fato reconhecido como crime. E este não é de ação privada, mas publicíssimo, como o procedimento espúrio -de proporções ainda desconhecidas- que inquinaria o direito à reeleição à Presidência da República e às governanças e prefeituras da Federação brasileira.
A garantia do anonimato pode ser tecnicamente acudida pelo poder público sem prejuízo do conhecimento dos fatos e, a partir deles, da instalação dos inquéritos, no empenho pelas autoridades de garantir o cumprimento da lei.
Não se está aqui diante de alegação solta, de meras suspeitas ou do que se colhe à boca pequena nos corredores do Congresso. Deparamos com a afirmação da existência, justamente, de provas, a manifestar a evidência de fatos delituosos.
O Congresso pode tergiversar sobre a iniciativa, mesmo venha a ser réu de enorme omissão frente à opinião pública, se se furtar à constituição da CPI, que grita aos olhos.
Afinal de contas, deputados são funcionários públicos e incidem no específico crime de corrupção -independentemente das sanções do Congresso e de seu regimento. E, doutra parte, não é pela negação da admissibilidade da fita, no probatório pelo Supremo Tribunal, que se impedem a formação de convicções e a busca das evidências por outros meios.
Na base das fitas, dois deputados foram sumariamente expulsos de seu partido. E a certeza que traz ao país o repórter da Folha é suficiente para, em depoimento seu, sem abrir a guarda da primeira fonte, assentar essa mesma convicção de que a compra de votos, às vésperas da aprovação da emenda, não se cingiu aos casos do Acre.
Está-se também diante de alegação em texto de jornal, reiterando não só a existência de novas fitas -"vozes gravadas"-, mas seu vínculo à votação de emenda constitucional. O Supremo, sabemos, não reconhece a validade de depoimentos feitos à socapa.
Se as provas provam, mas não se as aceitam, o espúrio de sua obtenção não desfaz o fato que manifestam. E evidência "ilegítima" se refaz por outro modo, e o "Senhor X", ocultando as fitas remanescentes, está obstruindo a ação da Justiça na apuração de crime do mais alto impacto na vida pública.
Dessa apuração não tem como fugir o Judiciário, na obrigação "ex-officio" do Ministério Público de instalação do competente inquérito e audiência do jornalista Fernando Rodrigues.
Toda a condição de sigilo, como quer o jornal, pode ser resguardada pelo procedimento, acautelando a tarefa fundamental que vem desempenhando a imprensa no fortalecimento das nossas instituições democráticas.
O serviço que o país deve à Folha tem como sua sequência necessária distinção entre as esferas pública e privada da que denunciou.
A preservação da fonte vai ao foro particular e à economia direta de interesses entre a mídia e o denunciante. Mas o conteúdo do dito desborda para o espaço público e pode se transformar em segredo de polichinelo.
As negaças dessa berlinda pobre só fazem suscitar outra e ainda mais grave indagação do país. Por força, os deputados já inequívoca e confessadamente implicados na negociata sabem com quem tiveram as conversas letais, ou pelo menos o supõem.
Não é tão fugidia a identificação desse "inimigo oculto". Por que mantém ainda o silêncio? E até quando o país se manterá refém dessa resposta? A que novo preço continuarão as bocas fechadas neste Eldorado de todos os estupores, ou do inexorável faroeste em que a Amazônia começa a deitar sua sombra sobre a mais crucial das decisões deste Congresso?

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