São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 1997
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O jornalismo de insinuações

LUÍS NASSIF

O artigo do ombudsman da Folha, Mario Vitor Santos, sobre o caso Paulo de Tarso Venceslau é capítulo importante na grande luta atual da imprensa de reavaliação de procedimentos anacrônicos e de consolidação de novos valores.
Militante histórico do PT, Venceslau tinha denúncias sobre pessoas próximas a Lula. Durante três anos, tentou tratar do caso internamente, no âmbito do partido. Não conseguindo, trouxe-o à tona. Suas denúncias vieram no momento em que o governo federal era alvo de outras denúncias e foram aproveitadas por adversários do PT para desviar o fogo do governo e centrá-lo no partido.
A iniciativa de Venceslau é passível de julgamento político. Conhecendo a vida de Venceslau e sua luta interna para esclarecer o episódio, algumas das principais lideranças do PT evitaram julgamentos morais.
Principal atingido pelas acusações, Lula buscou razões pessoais em sua atitude. Tratou-o como ressentido e personalista. Mas não avançou em condenação moral.
Pouco importa. Nos dias seguintes, Venceslau foi submetido a um linchamento moral poucas vezes visto, baseado exclusivamente em insinuações.
Teria traído os companheiros no congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna, nos anos 60. Teria entregado Marighella à repressão. Teria beneficiado consultorias quando secretário das Finanças de prefeituras petistas. Teria se tornado tucano porque reconheceu méritos no Plano Real. Teria sido beneficiado pelo governo gaúcho, que resolveu colocar em dia pagamento por serviços prestados por uma empresa da qual Venceslau era mero contratado.
Teria, teria, teria... não havia uma só acusação objetiva, nenhum elemento de convicção que permitisse buscar outras motivações em Venceslau que não a de levar até o fim uma luta pessoal quase alucinada. E, se uma só dessas insinuações se sustentasse, como explicar que, até a eclosão das denúncias, Venceslau permanecesse como um dos nomes respeitados do partido?
Linchamento sem risco
O artigo do ombudsman é relevante por restabelecer a verdade dos fatos, confrontando argumentos de acusadores e acusado.
Mas, principalmente, por trazer à tona um dos instrumentos mais controvertidos e menos dignos da cadeia de vícios que caracteriza o jornalismo atual: o uso da insinuação como elemento jornalístico.
Pode-se liquidar uma reputação sem correr riscos, simplesmente escrevendo: "Suspeito de ser desonesto, fulano negou a acusação a esta reportagem". Pronto: não é o jornalista quem afirma, são rumores, que voam pelo ar sem donos, como pardais vadios. E se deu a oportunidade à vítima de negar que seja desonesta.
O episódio Venceslau é rico em lições.
A primeira delas é que denúncias são fatos que têm ou não valor em si, independentemente da motivação do denunciador. No episódio da compra de votos, tentou-se também desqualificar as denúncias revelando as motivações do denunciador. Se motivação de fonte fosse fator desqualificador de denúncias, 90% dos casos de denúncias nem seriam considerados.
A segunda lição é que insinuações só se tornam injúrias quando saem do ambiente restrito do boca-a-boca e se permite sua divulgação.
A terceira lição é que, se insinuação passar a ser elemento jornalístico, sugere-se a substituição de repórteres por cabeleireiros. Como costuma dizer o colunista Ricardo Boechat, jornalistas e cabeleireiros têm em comum o acesso irrestrito a fofocas. O que os diferencia é que jornalistas têm a obrigação de transformar fofocas em fatos antes de divulgá-las.

Email: lnassif@uol.com.br

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