São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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O inverno do tucano

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Meu amigo tucano está furioso. Pela primeira vez, desde o advento do tucanato, vejo-o realmente transtornado. Pela primeira vez, parece duvidar de que as coisas estão indo bem e que o país caminha celeremente para o Primeiro Mundo.
- "Nem inverno essa porcaria tem mais", resmunga, em bicas, com seu pulôver amarelinho e um extemporâneo cachecol, tomando uma Perrier nos Jardins.
Está com a macaca:
- "Um país que tem Alagoas não pode pensar em desenvolvimento", sentencia. E prossegue:
- "Um país que tem Inocêncio não pode ter ciência política". "Um país que tem Stedile nasceu para comer passoca".
Diante de tamanha impaciência, sento-me e peço um prosaico creme de papaia.
- "Esse negócio da PM é grave. A PM é o funcionalismo armado. É a crônica de uma crise anunciada", provoco. "Eu mesmo já escrevi sobre isso".
Ele retruca no ato:
- "Vocês jornalistas sempre já escreveram sobre tudo. É muito fácil. Difícil é encarar a 'realpolitik', brother. Ir lá negociar com os bandidos, convencer que as coisas devem ser feitas para o bem do país".
- "Mas que é grave, é".
- "É, mas vai tirar o dinheiro de onde? Do seu... Ora, está todo mundo falido e ninguém quer fazer as reformas. É um escândalo!"
- "Concordo que é difícil, mas o governo está fazendo má política e abrindo a guarda".
- "Tudo bem, eu também concordo com isso".
Ainda sem acreditar no que ouvi, interrompo a colherada cremosa e fito meu amigo tucano. Ele, então, coça o bico magnífico, e diz o que jamais admitira:
- "O Fernando (os tucanos de bico magnífico referem-se dessa forma ao presidente da República) às vezes vacila mesmo. Já falei isso pra ele".
- "E..?"
- "E nada, rapaz. Não vou ficar aqui dando munição para a mídia".
- "E você acha que a mídia precisa de mais munição, com o 'processo' que está por aí em curso?"
Meu amigo tucano abaixa os olhos e respira fundo. "É foda", ouço-o pensar baixinho.
- "Tudo bem, meu querido. Eu vou indo", anuncia. E levanta-se.
- "Será que vai esfriar?", ainda pergunta, enquanto desata o cachecol e começa a caminhar entre os Audis e Cherokees que engarrafam os Jardins paulistanos.

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