São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Recentralização fiscal e arbítrio político

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Nesta semana no Congresso Nacional assistimos à culminância de toda uma série de manobras fiscais, financeiras e políticas feitas com a mais cabal desconsideração tanto pelos interesses como mesmo pelos direitos de Estados e municípios, com o propósito exclusivo de concentrar poderes e recursos nas mãos do governo federal.
O "apetite" fiscal da União parece não ter fim, e o "ajuste fiscal permanente" vem sempre acompanhado de promessas de uma reforma fiscal futura e de "compensações" pela perda de receita dos Estados e municípios até agora não cumpridas.
No plenário da Câmara foi aprovada, num "tour de force" da maioria governista, a prorrogação do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), que subtrai um volume significativo de recursos do Fundo de Participação dos Estados e Municípios e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). O fato de que, em troca da prorrogação do FEF, se esteja oferecendo aos municípios um empréstimo, quando esses já dispõem -caso se extinguisse, como previsto, o FEF- de verbas próprias a eles destinadas pela Constituição em volume duas vezes maior do que o prêmio de consolação do governo, não parece impressionar o ministro do Planejamento, que anunciou a linha de crédito como se trouxesse uma benesse, em vez de mais um ônus, para os munícipes do Brasil -ou seja, todos nós.
Além do FEF, que vem sendo usado como medida de "emergência" fiscal desde o Programa de Ação Imediata -e durará ao todo seis anos se não for prorrogado de novo- e da recente "desoneração" do Imposto de Exportação (Lei Kandir), feita à custa dos Estados, está em discussão na Comissão de Orçamento a chamada "reestruturação e ajuste fiscal dos Estados", que, além de pesadíssimos encargos de amortização, impõe às unidades da federação uma transferência de receitas fiscais correntes para o Tesouro superior a R$ 7 bilhões ao ano.
A proposta de abertura de um crédito especial de R$ 103 bilhões, encaminhada pelo ministro do Planejamento, por meio da Fazenda, para a consolidação e refinanciamento das dívidas estaduais, é apresentada, nesse contexto, como a solução que equacionará em definitivo a preocupante situação financeira dos Estados, o que não corresponde à verdade. Nem a dívida total ao final da renegociação estará toda contemplada (só a dívida até 31/01/97 e assim mesmo excluindo os precatórios) nem a situação corrente das finanças públicas melhorará, senão pelo contrário.
Do ponto de vista fiscal, está sendo imposto aos Estados um pagamento entre 11% e 13% de suas receitas correntes (ICMS), independentemente de sua capacidade efetiva de arcar com tais encargos. O esquema simplesmente desconsidera fatores essenciais à capacidade de pagamento dos Estados como: a elasticidade das suas receitas correntes diante da queda do crescimento econômico, as perdas de arrecadação com a prorrogação do FEF e a virtual impossibilidade de cortes ulteriores nos gastos correntes dos programas de educação e saúde -cuja execução já foi devidamente "descentralizada" para os Estados e Municípios.
Do ponto de vista financeiro, ao impor uma cláusula que virtualmente obriga a privatização das empresas estaduais, dadas em garantia na amortização das dívidas, o governo federal preconiza uma dilapidação do patrimônio dos Estados em benefício dos grandes grupos privados favorecidos pelo poder central, ficando as eventuais sobras com a União, até um teto de 20% da dívida.
Como se isso não bastasse, os acordos supostamente "neutros" para consolidação das dívidas estaduais prevêem, no caso de inadimplência dos Estados, a retenção pela União dos fundos a eles constitucionalmente destinados. Autorizam, além disso, aos bancos centralizadores da negociação (ainda que estejam privatizados, como no caso do Banerj) atuar como agentes arrecadadores do Tesouro, retendo diretamente receitas fiscais dos Estados das quais só têm que prestar contas a cada três meses.
A autorização lembra as "negociações da dívida" dos velhos tempos coloniais, impondo aos governadores condicionalidades para sua gestão financeira ainda mais draconianas do que aquelas que os países centrais impuseram ao próprio governo do Brasil na negociação da dívida externa.
Do ponto de vista político, a sanha impositiva do Executivo estende-se ainda ao Congresso, pressionado a dar autorizações pretorianas aos pró-consules da República, concedendo-lhes um cheque em branco que viola a Lei de Diretrizes Orçamentárias e liquida com qualquer conceito de orçamento da União. Todas essas operações estão apoiadas em duas medidas provisórias do Executivo, pretendendo-se extrair do Congresso, por maioria simples, uma autorização para romper uma cláusula pétrea da Constituição, a saber, a partilha fiscal que funda o pacto federativo e a própria independência de execução fiscal dos governos estaduais.
No que diz respeito à "transparência" da operação orçamentária -lançar em amortizações R$ 101 bilhões destinados a cobrir "despesas decorrentes da assunção, aquisição de ativos e financiamento de dívidas dos Estados"-, a nota técnica do Tesouro que acompanha a exposição de motivos dos ministros é exemplar. Nela não consta sequer o escalonamento das despesas, nem se faz menção aos cerca de R$ 40 bilhões da dívida mobiliária dos Estados, atualmente financiada pela União por meio do Banco Central via emissão de LBC-E.
Supondo que a troca definitiva de títulos estaduais por federais venha a ser realizada em 31/12/97, o estoque de LBC-E que valia R$ 37 bilhões em maio último equivalerá em dezembro a aproximadamente R$ 42 bilhões, contabilizados a uma taxa de juros over/Selic similar à atualmente em vigor no mercado. Entretanto, mediante a autorização que ora pleiteia, o Tesouro ainda terá em carteira um saldo próximo de R$ 60 bilhões, dos quais poderá dispor, quando e como lhe aprouver, sem nenhuma autorização adicional do Congresso.
Se para o governo federal o esquema é muitíssimo atraente, o mesmo não se pode dizer com relação aos Estados. A maioria dos Estados não estava pagando a dívida, limitando-se a rolá-la. Isso fez com que a dívida global, acumulando juros sobre juros, tenha dobrado em termos meramente contábeis desde o início das atuais administrações estaduais, sem que ocorresse emissão de dívida nova. Somente o aumento da dívida mobiliária dos Estados originado pela rolagem, em condições de juros explosivos, alcança R$ 46 bilhões entre janeiro de 1995 e janeiro de 1997. A "solução" encontrada significará, portanto, a imposição de um regime de contenção e cortes ainda mais pesado do que o que vem ocorrendo atualmente, que não será resolvido pelas falácias da "reforma administrativa" ora em curso.
A lastimável conclusão é que, seja pela prorrogação do FEF, seja pela proposta de refinanciamento das dívidas estaduais, o governo federal vem levando ao paroxismo sua voracidade por centralizar recursos e concentrar poderes, a expensas da Federação e da ordem constitucional -as duas únicas e verdadeiras garantias de nossa incipiente democracia.

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