São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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O outro lado da defesa da concorrência

RUBENS PENHA CYSNE

Há pelo menos duas formas pelas quais as firmas com poder de mercado podem punir os consumidores: pela elevação dos preços ou pela má qualidade dos bens vendidos e/ou serviços prestados.
Um mínimo de observação deixa claro, no brasileiro, que o consumidor tem sido muito mais prejudicado pela eliminação de concorrência gerada no seio do próprio setor público do que pelos setores produtivos privados atualmente em foco. As empresas estatais de telefonia são bons exemplos nesse sentido.
O problema maior, nesse caso, não reside na existência de estatais, mas sim na existência do monopólio estatal. A recente queda à metade das tarifas de telefonia celular em Brasília, quando da introdução de um novo provedor, na banda B, é um exemplo peremptório das perdas para o consumidor decorrentes de estruturas estatais monopolizadas.
Quanto será que os consumidores estão pagando pelos outros castelos, ainda intocáveis? E os governos federal, estaduais e municipais, quanto estarão deixando de arrecadar nos respectivos leilões de concessão que poderiam estar sendo gerados?
Outro exemplo, entre dezenas possíveis, este estadual, pode se observar pelo monopólio da Conerj no transporte marítimo da baía de Guanabara. Quem já foi a Hong Kong conhece as facilidades que uma baía como aquela pode proporcionar em termos de transportes diversificados, seja pela proliferação de linhas ou de tipos de transporte marítimo.
No Rio, além de clara ausência de diversificação de produtos (linhas), tal monopólio tem gerado elevadas perdas para os consumidores, seja pela má qualidade dos serviços prestados (recentemente, por mais de uma vez uma das embarcações perdeu o leme e ficou a dar voltas em círculo na baía), seja pelo tempo perdido em trânsito decorrente da sobreutilização da ponte Rio-Niterói, bem substituto, sempre congestionada em horários de maior movimento.
Com a concorrência, o governo poderia não apenas arrecadar fundos fiscais na concessão, mas também permitir várias outras ligações entre bairros, incrementando sobremaneira o transporte na baía.
A relação de restrições à entrada ou de reservas de mercado criadas artificialmente no Brasil, no setor estatal, é muito extensa para ser aqui enumerada. Há reserva de mercado até no seguro de acidentes de trabalho, que somente pode ser adquirido ao INSS (nesse caso, no jargão de defesa da concorrência, venda casada).
Certa vez, Milton Friedman, Nobel de Economia, referiu-se a três demônios: o demônio do monopólio privado regulado, o demônio do monopólio privado não-regulado e o demônio do monopólio estatal. Se morasse no Brasil, provavelmente teria cunhado um quarto demônio, o do monopólio corporativista.
Exemplo nesse sentido foi a reserva de mercado de informática na década de 80, que atrasou o país na informática e castigou sobremaneira os consumidores. Onde estava o Cade nessa época? Um exemplo mais atual pode ser dado pelas barreiras a entradas institucionais na ponte aérea Rio-São Paulo.
O mais curioso exemplo de reserva de mercado se inicia pela própria Constituição de 1988, que, em seu artigo 164, destina exclusivamente ao Banco Central os depósitos da União, e a instituições financeiras oficiais as disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos do poder público e das empresas por ele controladas, ressalvados os casos previstos em lei. Em outros países tais tarefas costumam ser divididas com os bancos privados.
Por que, então, o Cade concentra sua atuação apenas sobre o setor privado, deixando de questionar inúmeros casos que obviamente teriam maior impacto sobre o consumidor?
O problema não é constitucional. Curiosamente, a mesma Constituição, que cria reservas de mercado no setor financeiro, em seu artigo 173, parágrafo 4º, deixa claro que "a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" e, em seu parágrafo 1º, determina que "a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas (..)".
O problema também não reside na lei 8.884/94, que regula a defesa da concorrência. De fato, seu artigo 15 a torna aplicável "a pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado... mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal". Os casos supracitados podem todos se enquadrar no artigo 20, inciso IV, que coloca como infração à lei "exercer de forma abusiva posição dominante".
Seria então essa concentração de ações no setor privado falta de percepção do Cade? Documentos internos de autoria dos próprios funcionários do Cade deixam claro que não. O incansável e brilhante trabalho desenvolvido por seu presidente também não sinaliza nesse sentido. O problema, evidentemente, reside em fatores políticos. Nossas instituições se acham suficientemente fortes para ousar.
Embora particularmente nocivo no caso brasileiro, devido às diversas reservas de mercado criadas pelo setor estatal, esse problema não é exclusivamente nosso.
Uma declaração nesse sentido, de Russel Pittman, do Departamento de Justiça Americano, transcrita de interessante trabalho de Cesar Mattos, consultor do Cade, é bastante elucidativa: "Embora muitas leis de defesa da concorrência em vários países concedam ao respectivo órgão regulador competência para questionar as ações do governo que causem danos à competição, costuma haver uma cautela muito grande na ação desse poder, pelos possíveis embaraços que seriam causados, no seio do próprio governo, incluindo-se até mesmo a possibilidade de a agência de defesa da concorrência ser completamente ignorada".
O Cade não questiona ainda os monopólios estatais, provavelmente pelo mesmo motivo pelo qual o Banco Central não conseguiu fazer com o Banespa o que desejava havia dois anos, privatizá-lo ou liquidá-lo.
Ou pelo mesmo fato pelo qual a Secretaria da Previdência Complementar não consegue enquadrar as entidades fechadas de previdência privada estatais. Ou pelo motivo por que a CVM muitas vezes dita normas que não consegue fazer cumprir. Embora contando com profissionais do mais alto nível em suas respectivas direções, tais instituições muitas vezes podem se ver diante de dificuldades de ordem política, que lhes limitam a ação.
Apenas a sociedade, conscientizando-se da necessidade e utilidade dessas instituições, pode conferir-lhes autonomia "de facto". A autonomia que já existe na lei, como vemos, não é suficiente.
De qualquer forma, o Cade terá de pautar sua atuação também pelo questionamento do exercício abusivo de posição dominante no seio do próprio setor público. A sociedade começa a perceber que os custos sociais daí decorrentes podem em muito superar aqueles associados aos monopólios ou oligopólios privados atualmente em foco.

E-mail: rubens@fgv.br

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