São Paulo, sexta-feira, 25 de julho de 1997
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Gênero é um ovo de ouro

HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ainda me lembro da cena em 1988: estava sentado no ônibus, atravessando a ponte Rio-Niterói e programando uma bateria eletrônica das mais primitivas.
Contei para ele a história da garota que ia para feira vender o ovo da sua galinha e imaginava que com o dinheiro iria comprar mais galinhas, e depois um galinheiro e depois uma fazenda e assim por diante, distraída com os pensamentos, tropeça, deixar cair o ovo, que se quebra terminando com seus planos mirabolantes.
Até hoje, quando me encontra, Marlboro sempre brinca: "O ovo ainda está inteirinho".
Minha desconfiança tinha motivo; até aquele ponto -mais de 15 anos depois do primeiro baile funk ter sido organizado no Rio- a música que animava funkeiros cariocas era importada.
Ninguém sabia se a produção de balanços e melôs (como os sucessos de bailes eram conhecidos) em português teria sucesso entre os dançarinos.
A situação chegou ao nível mais baixo depois do suspeito "arrastão" de 92, quando os funkeiros foram transformados em bodes expiatórios para todos os males da cidade.
No dia 5 de fevereiro de 1994, o principal editorial do "Jornal do Brasil", intitulado "A Ameaça das Favelas", afirmava: "Das favelas, de onde se espraiam os acenos da marginalização, o perigo não pára de crescer. Tiroteios, guerras de quadrilha, bailes funks, lixo lançado para baixo, invasão das reservas florestais, desrespeito à propriedade particular, tudo se avizinha do delírio".
O local do funk, entre as guerras de quadrilha e o lixo, não deixa margem para dúvidas sobre as medidas que poderiam ser tomadas para conter sua "ameaça": "Os bailes funks são um caso de polícia e deveriam ser combatidos em nome da paz social" (editorial do "JB", 19 de julho de 1995).
Nessa ameaça de apartheid social e cultural, foi bom descobrir que a mídia não é um mundo homogêneo (o "JB" publicou meus artigos defendendo o funk). Enquanto a TV Globo transmitia matérias apocalípticas antiarrastão no "Fantástico", Xuxa se transformava em embaixatriz do funk. Não era para menos. Sem que ninguém soubesse como, as festas infantis dos vigiados condomínios da Barra tinham se transformado em minibailes de subúrbio. Logo depois, o rap carioca se tornou moda entre adolescentes da zona sul -que aprenderam mais uma vez a subir o morro para dançar e se divertir.
Mesmo assim, nunca li nada interessante sobre a música que o funk carioca produz há quase uma década. Preconceitos sociais aparecem disfarçados de critérios estéticos.
Não levo a sério as cobranças de "qualidade artística". Talvez os críticos um dia chamem de clássicos músicas hoje desprezadas como o "Rap da Felicidade" ou o "Rap da Capoeira" (no Rio, evidentemente, o rap não imita o gangsta e sim cria o novo se misturando com as melodias afro-brasileiras...).
Como Marlboro faz questão de me lembrar, o ovo está intacto. E cada vez mais resistente. Afinal de contas, ele contém a vitalidade (e a possibilidade de sobrevivência) do melhor da cultura popular carioca.

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