São Paulo, sexta-feira, 25 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dos livros e de sua utilidade

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Nunca é demais louvar e relouvar os livros. Eles são -como disse o poeta- a carne da alma e, em determinadas circunstâncias, podem ser mais do que isso. Vamos ao caso. Outro dia precisei trocar uma lâmpada queimada lá em casa. A tomada ficava num teto rebaixado, no pequeno corredor que liga o hall interno ao quarto que os corretores de imóveis apelidam de suíte principal.
Foi mole desatarraxar os dois parafusos que prendiam a luminária. E mole, também, foi a retirada da lâmpada queimada que obviamente já estava fria, fria como um pequenino cadáver de vidro. Sem qualquer dificuldade coloquei a lâmpada nova e logo a testei, para ver se cumpria sua nobre função de iluminar os meus escuros e espantar os meus pânicos. Fiz, enfim, tudo o que me competia fazer em hora tal e circunstância específica.
O mais difícil seria colocar a luminária em seu devido lugar, e para isso eu teria de meter dois parafusos, infames e pequeninos, em buraquinhos igualmente infames e pequeninos.
Eu vencera os primeiros obstáculos da operação sem apelar para escadas, bancos ou cadeiras. O teto era baixo -como já disse- e minha altura, segundo eficiente descrição de um agente do SNI que andou fuçando a minha vida, é mediana. Para introduzir os minúsculos parafusos nos minúsculos buraquinhos, eu precisava de bom ângulo. Catei uma cadeira, tentei subir, mas a cabeça bateu no teto, o que me obrigou a deixá-la encostada no ombro. Devo ter ficado com a aparência do corcunda de Notre Dame e por mais que procurasse acertar os raios dos buraquinhos, logo desanimei.
Tinha de procurar alguma coisa que me elevasse 10 a 15 centímetros apenas -e não havia nada no doméstico almoxarifado que me pudesse servir. Tentei quebrar o galho com um caixote de uvas que chegara do supermercado, mas a madeira era frágil, não suportaria o peso de minhas viandas acrescidas pelo peso de meus pecados. Ia dar a luta como perdida, mais tarde convocaria um eletricista, procuraria um que fosse mais alto do que eu, mas não muito, ele recolocaria a luminária sem necessidade de adjutórios que lhe aumentassem o tamanho e a competência.
Estava batendo em retirada quando me lembrei do escritório. Sim, lá estavam, à minha disposição, uns 10 mil livros de variados tamanhos e serventias. Não demorei muito na escolha. Numa primeira avaliação, eliminei sumariamente mais de três quartos deles, fixando-me nos mais sustanciosos, de lombada mais gorda e resistente.
Quase ia pegando uma seleção dos Cantares do Ezra Pound, edição de Verona, sólida como os seus versos. Retirei-a da estante e verifiquei que não me serviria: era grossa, mas não daria apoio suficiente ao tamanho de meus pés. Pensei também num volume verde e parrudo, obra completa do Kafka, edição Losada, de Buenos Aires, que ganhei de uma antiga rumbeira da Orquestra de Francisco Canaro que andou por aqui nos tempos em que eu ganhava a vida escrevendo programas para uma rádio local.
Foi então que bati os olhos na Enciclopédia Britânica, imensa, maternal. Lá estavam os 25 volumes à minha espera, submissos como bons livros que eram, solenes como bispos num concílio -para usar a excelente imagem do Eça de Queiroz.
A última vez que mexera neles fora para conferir o ano da batalha de Marengo, uma revista me encomendara um texto sobre as guerras napoleônicas e eu precisei checar época e detalhes da campanha da Itália. Também a consultei, não faz muito, para aprender a grafia certa de Kierkegaard (e a preguiça me impede de ir agora à estante para saber se escrevi honradamente o nome do cara). Bem, voltemos à luminária: apanhei três nutridos volumes da Enciclopédia Britânica e me coloquei embaixo do ponto de luz. Logo percebi que um só volume seria pouco -e três, como na Casa do Caboclo, seria demais.
Não deu outra. Com dois volumes, o número 5 (Carthusians-Cockcropft) e o número 10 (Garrison-Halibut), obtive o patamar exato para o exato ângulo. Os dois parafusos se encaixaram sem dificuldade -e eu senti o mesmo orgulho de Arquimedes quando descobriu a lei da imersão dos corpos.
Só não saí pela Lagoa gritando "eureka! eureka!" porque não estava nu. Mas senti uma cabotina admiração por mim mesmo e pelas minhas recônditas potencialidades.
Já tanto quebrei a cara em outros lances pela vida afora que a auto-estima anda por baixo, rolando no chão. Nada como a vitória contra dois parafusos para recompor a dignidade ferida.
Depois da epopéia, fui colocar os volumes da Enciclopédia na estante -e nunca os livros me pareceram tão úteis e eficientes. Olhei-os comovidamente, com água nos olhos e ternura no peito. Pensei em escrever uma carta ao Instituto Nacional do Livro e ao Sérgio Machado, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, saudando-os e louvando-os em nome das muitas serventias de que um livro é capaz. Preferi registrar nesta crônica a minha admiração ampliada pela minha gratidão. E agora, aproveitando o fato de estar motivado, voltarei ao volume 10 da Britânica para saber que diabo é Halibut.

Texto Anterior: Cazuza volta ao palco na voz de Cássia Eller
Próximo Texto: Valerie Solanas merece 15 minutos de fama
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.