São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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A fraternidade de metáforas

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sobre as relações entre cinema e história, "História(s) do Cinema" afirma antes de tudo que a questão fundamental não é como fazer a história do cinema ou como o cinema dá conta da história. Ambas as questões estão subordinadas a uma outra indagação: a que história pertence o cinema? Uma história não é uma cronologia, mas, sobretudo, um sentido de história ou uma historicidade. É assim que devemos compreender a resposta provocativa de Jean-Luc Godard: o cinema pertence ao século 19. Pertence ao século 19 não somente porque é o produto final de longas pesquisas para reproduzir a vida, fixar a luz, decompor e repetir o movimento, mas porque o próprio conjunto dessas operações pertence ao pensamento de todo um século.
Esse pensamento é uma certa "moeda", uma certa "cunhagem" do absoluto, pois há inúmeras maneiras de cunhar o absoluto, como nos demonstra o cinema. A cunhagem do absoluto praticada pelo século 19 pode ser resumida numa fórmula bastante concisa, enunciada na década de 1830 por homens que se consideravam simultaneamente como engenheiros e novos sacerdotes: os sansimonistas.
Segundo eles, o século podia ser resumido em duas expressões: estrada de ferro e novo cristianismo. "Nem uma arte nem uma técnica, um mistério", diz "História(s) do Cinema". Os sansimonistas, à sua maneira, já tinham feito a mesma declaração ao afirmar que a estrada de ferro é mais que a estrada de ferro, mais que a técnica; a estrada de ferro é a nova linguagem que vincula os homens de forma bem mais precisa do que a velha tagarelice do verbo, unindo-os pelas vias férreas. Do mesmo modo, a arte é mais do que uma arte, é o cerimonial da nova religião. Não mais um espetáculo, mas o coro vivo da comunidade dos construtores de estradas de ferro. O canto solfeja agora a nova trindade religiosa ou, em termos sansimonistas, o proletário, a indústria, a mulher.
Ao dividir a fórmula ao meio, obtemos de um lado o proletário e a indústria, de outro a indústria e a mulher. O sonho soviético contra o sonho hollywoodiano, como nos mostra "História(s) do Cinema". Notamos que o cinema pertence a essa união, a esse laço primordial entre sonho e máquina formulado pelos sansimonistas como o pensamento de seu século.
O cinema é contemporâneo da máquina que tudo sintetiza: o avião, máquina celeste, anjo, pássaro de ferro, mas também máquina de sonho e de morte. A câmera, a estrada de ferro, o avião, o fuzil formam os elos que encadeiam Hitler à teleobjetiva de James Stewart em "Janela Indiscreta". "Moeda do absoluto" e "Resposta das trevas". Mas, ao expor os fatos de tal forma, rebaixaríamos tais histórias a um bordão já bastante conhecido: utopia mais técnica resulta em Gulag. Ora, Godard tem em mente algo mais profundo. Além dos dois termos, há ainda um terceiro: "Montagem, meu cuidado eterno". O que nos mostra sua montagem? Siegfried e, a seguir, os Panzer que vêm assolar as paisagens impressionistas, os arames farpados que emergem dos campos de trigo de Van Gogh. Em outras palavras, ele mostra que não há somente um, mas dois séculos 19. Não há somente uma cunhagem do absoluto, mas duas.
A primeira são as estradas de ferro e o coro da religião comunitária terrestre. A segunda é a revolução artística, ou seja, a nova forma da tradição histórica na qual figuram as mulheres de Manet ou os campos de trigo de Van Gogh. Esses olhares que dizem "sei em que está pensando" nos mostram a interioridade e nos reúnem ao cosmos. Esses campos de trigo, em suas pinceladas simbólicas, pulverizam o velho sol da idéia e da religião. As formas caminham rumo ao pensamento. Siegfried percorrendo os campos de trigo do impressionismo ou a lança de Hagen (ou de Hollywood) transpassando Siegfried representam uma cunhagem do absoluto -um século destruindo outro.
Em suma, Godard mostra como o século 19 matou aquele que se preparava para ser o século 20. No fundo, o cinema não compareceu à sua passagem de século. Por quê? A voz de Godard é testemunha: os diretores não souberam controlar a vingança da realidade que eles próprios filmaram inúmeras vezes. A realidade vingou-se dos consumidores do imaginário ao exigir sua própria ração, uma ração de sangue verdadeiro e de lágrimas verdadeiras.
Tal resposta também vai mais longe do que o velho refrão: "Desforra da realidade contra a utopia". A realidade não se vinga porque a esquecemos, mas porque a imitamos e a obrigamos a imitar a si própria para além dos limites da realidade. A realidade vinga-se daqueles que não souberam controlar a ficção e foram incapazes de conferir-lhe um novo estatuto, um estatuto da era da máquina: o estatuto, justamente, das formas que caminham rumo ao pensamento. A realidade vinga-se daqueles que mantiveram a ficção à sombra da religião, que transformaram a ficção em mais um substituto da eucaristia, que traficaram as lágrimas e o sangue do Cristo. E aqueles que assim o fizeram são impotentes contra a outra face da nova religião, a comunhão do povo em seu mito fundador. A catástrofe política e a catástrofe artística são uma única e mesma catástrofe -a catástrofe da ficção. A ficção é muito mais que a invenção da história ou o poder do imaginário. A ficção, no século 19, é a pós-religião.
Há duas maneiras de acertar as contas com a religião. A primeira consiste em dizer: baixemos à Terra tudo o que se acha no céu, transformemos em realidade todos os projetos dos homens esboçados no céu da religião. Essa é a maneira que triunfou. Mas há a atitude inversa, segundo a qual somente uma única coisa deve ser reivindicada à religião: o movimento de Elevação, de afastamento ou, para usar um termo caro à "História(s) do Cinema", o movimento de projeção. Não se trata de reconduzir o distante para a esfera do próximo, mas sim de projetar o homem o mais longe de si mesmo, a ponto de fazer com que uma outra luz possa iluminar sua passagem pela Terra -uma luz cuja origem não sejam os antigos deuses, mas o próprio lar que os viu nascer.
Ora, essa segunda maneira foi formulada no século 19, há exatos cem anos, por um contemporâneo de Manet e de Wagner: Mallarmé. Ao escutar as diversas vozes presentes na "História(s) do Cinema", posso distinguir um empreendimento idêntico, ainda que separado por um século de distância: conferir à ficção um sentido puramente humano, livre daquilo que Mallarmé chamou de "iguaria bárbara da Eucaristia". Ou seja, separar a ficção do mito -um mito que reúne a comunidade em torno de sua origem ou da narrativa na qual ela se reconhece. Contrapor à figura na qual nos reconhecemos aquilo que Mallarmé chamou de "a figura que não está em lugar algum, pura metáfora de nossa forma". Conferir à ficção o estatuto de uma pura projeção. Fixar uma constelação improvável sobre uma superfície vacante e superior.
Nem uma arte nem uma técnica, um mistério. Mallarmé conferiu um sentido novo à palavra "mistério", no qual se condensam três significados. Primeiro, o jogo das formas responsável pela harmonia (ou melhor, pela analogia) entre a interioridade e o teatro do mundo. Segundo, o invisível puramente humano, característico da vida humana. E, finalmente, o invisível situado à distância, seu mistério, sua ficção. Não o divino recuperado, mas sim o homem projetado. A luz posta a uma distância capaz de incidir sobre a vida humana como sua própria luz, como a luz apropriada ao homem. Em suma, para pensar nos termos de Mallarmé, o homem é, na verdade, um animal quimérico que deve reconhecer-se como animal quimérico. Só então a comunidade poderá viver não mais do mito de sua origem reencontrada, mas dessa fraternidade de metáforas de que nos dá notícia "História(s) do Cinema".
Meu propósito foi encadear sumariamente um sonho de 1895 com um sonho e um balanço de 1995 (ano do centenário do cinema). Mas não deixa de ser uma abordagem reducionista afirmar que primeiro surgiu o sonho e depois veio o fracasso. Não temos um sonho e depois um balanço. Temos duas obras e, do meu ponto de vista, um único e mesmo pensamento.

Tradução de José Marcos Macedo.

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