São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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'Na literatura há muito passado e pouco futuro, mas não há presente'

Continuação da pág. 5-5

Pergunta - O cinema ainda não se emancipou da literatura.
Godard - É verdade. Mas também se pode dizer que a literatura muitas vezes é cinema. Eu ouço bem... vejo... está claro. Quando os romances dizem isso, quem é que se exprime? O juiz de instrução, o jornalista investigativo, São Paulo a caminho de Damasco... É a legenda de um filme interior.
Pergunta - Mas o sr. nunca sentiu tentação de filmar algo que admira?
Godard - Sim, pensei muitas vezes em fazê-lo com "Palmeiras Selvagens", de Faulkner. Desisti da idéia porque não teria sido um bom filme. Seria preciso pegar apenas a história do amor louco do casal que sacrifica tudo por sua busca do absoluto, deixando de lado a história do velho condenado.
Pergunta - De onde vem sua teoria?
Godard - Li livros e vi filmes. Além disso, é lógico. Quando o trabalho de redação de um romance não é muito motivado, quando sofre de falta de criatividade, o cinema pode tomar posse dele e servir-se dele como estrutura de base, sem prejudicá-lo. Mas não se toca em "O Vermelho e o Negro".
Pergunta - Quando o sr. lê um romance, vê imagens?
Godard - Raramente. Se fosse assim, eu seria um mau cineasta. Que interesse haveria em se ver uma jovem recostada sobre o travesseiro quando se lê "A Fugitiva" (de Proust)? Se eu enxergasse imagens, no sentido em que a "Paris Match" as entende, eu seria também um mau leitor. Só Lelouch é capaz de imaginar planos ao ler "Os Miseráveis". Observe que ele retirou o nome de Victor Hugo dos cartazes. Provavelmente, temeu que isso lhe tirasse espectadores, justamente hoje, quando vivemos a mediatização total dos nomes! Deve ter temido que isso o fizesse soar como velho. É triste quando se chega a isso.
Pergunta - O dilema da traição versus fidelidade, que por muito tempo angustiou os adaptadores, deve lhe parecer ultrapassado?
Godard - A gente faz o que quer. No caso de "O Desprezo", Moravia foi simpático. Ele me disse: "Isso não lembra o livro, isso fica bem". De qualquer modo, eu não me importava com sua opinião. Não ia trabalhar com ele.
Pergunta - Mas muitos de seus filmes são adaptações, já que encontramos, em suas origens, romances de Benjamin Joppolo, Dolores Hitchens, Lionel White.
Godard - Como você vê, livros quaisquer.
Pergunta - O sr. não diria o mesmo de "Je Vous Salue Marie"', já que se tratava de um livro de Françoise Dolto...
Godard - Mas "L'Evangile au Risque de la Psychanalyse" não era um romance! E não tomei sua idéia. Do mesmo modo, para meu último filme, "For Ever Mozart", parti de um artigo publicado em "Le Monde des Livres", no qual Philippe Sollers dizia que, se se fosse fazer teatro na Sarajevo assediada, deveria se encenar "Le Triomphe de L'Amour" , de Marivaux, e não "Esperando Godot", de Beckett.
Pergunta - E os dois livros que o sr. acaba de publicar?
Godard - Não são livros. São recordações de filmes, sem as fotos e os detalhes que não têm interesse, como "O carro chega...". Encontramos até coisas que não estão no filme, o que é bem forte, em se tratando de uma lembrança. Esses livros não são nem literatura nem cinema. São traços de um filme, que se aproximam de certos textos de Duras.
Pergunta - O sr. não seria um escritor frustrado, como todos seus amigos da Nouvelle Vague?
Godard - Mais do que isso, Truffaut era um livreiro frustrado e um crítico na linhagem dos grandes críticos de arte franceses, de Diderot a Malraux, pessoas que tinham um estilo. É verdade que Rohmer e Astruc escreveram. Mas, quando assistimos aos filmes, nos sentimos, finalmente, livres do terror de escrever. Já não podíamos ser esmagados pelo espectro dos grandes escritores. No início, eu pensava em escrever. Era uma idéia, mas não era séria. Eu queria publicar um primeiro romance pela Gallimard. Tentei: "Era noite...". Não cheguei a concluir nem a primeira frase. Então, eu quis ser pintor. Acabei fazendo cinema.
Pergunta - Passando pela escrita, apesar disso?
Godard - É verdade, porque comecei a escrever sobre cinema antes de fazer filmes. Escrevi muitas críticas nos "Cahiers du Cinéma" e em "Arts". Mas eu não enxergava o cinema como uma forma de escrita. Era uma visão.
Pergunta - E os roteiros?
Godard - Era preciso tomar notas para orientar a feitura do filme, mas isso não era escrever. Os roteiros americanos no pré-guerra, escritos por romancistas, tinham uma forma que os tornava dignos de serem publicados. Isso não acontece hoje em dia. Hoje, não passam de diálogos de teatro, com um "interior da casa, de dia" e "exterior, à noite" inseridos. Não têm nada de interessante. Nós os mostramos às pessoas para que invistam dinheiro num filme. Dá para se perguntar o que eles vêem quando lêem um roteiro. Por sinal, eles não os lêem.
Pergunta - Foi a leitura de Cioran que o tornou mais sábio?
Godard - Ela corresponde a minha queda pelos aforismos, a síntese, os provérbios. Talvez esse gosto meu tenha origem nas fórmulas científicas. O aforismo resume alguma coisa mas, ao mesmo tempo, permite outros desenvolvimentos. Como um nó: poderia ter sido feito em outro sentido, mas, mesmo assim, quando está dado, o sapato fica preso no pé do mesmo jeito. Não se trata de um pensamento, mas do traço de um pensamento. Leio Cioran a toda hora, em todos os sentidos. É muito bem escrito. Com ele, o espírito transforma a matéria. Cioran me oferece uma matéria da qual o espírito se nutre.
Pergunta - Mas o que é que tanto o seduz nos aforismos?
Godard - Seu aspecto de central de triagem. A gente entra, sai, retorna. Quando encontramos um bom pensamento, podemos nos demorar nele por muito tempo, e depois carregá-lo conosco. Não é preciso ler tudo. Gosto muito de Fernando Pessoa, mas ele é muito sombrio, enquanto Cioran nos ajuda a viver. É uma forma de pensamento diferente daquele pensamento com começo, meio e fim. Não é uma história que se conta, mas um momento da história.
Pergunta - Percebe-se que o sr. assinalou trechos das "Obras Completas", de Cioran -é verdade?
Godard - Coisas como "cada pensamento deveria lembrar a decadência de um sorriso", "somos todos farsantes, sobrevivemos a nossos problemas", "todo problema profana um mistério, e este, por sua vez, é profanado por sua solução", "a palidez nos mostra até onde o corpo é capaz de compreender a alma", "cedo ou tarde, cada desejo deve encontrar seu esgotamento, sua verdade"... Sem falar neste, que me agrada especialmente: "Objeção a fazer à ciência: o mundo não merece ser conhecido". É muito diferente das idiotices de Georges Charpak. Os cientistas que se permitem escrever, sem saber escrever -isso não! "La Logique du Vivant", de François Jacob, estava escrito. Prefiro Buffon: o estilo é o próprio homem. Levinas tinha idéias bonitas, mas era incapaz de transmiti-las devido ao problema da língua. A mesma coisa aconteceu com Popper e Einstein. Há um esgotamento do saber escrever. Já Cioran... Eu havia esquecido o seguinte: "No contato com os homens, perdi o frescor de minhas neuroses".
Pergunta - O sr. é melancólico?
Godard - Eu diria que sou sonhador. E solitário. Demais.
Pergunta - Com quais criadores o sr. sente que compartilha um destino comum?
Godard - Novalis, Nicolas de Staël... Pessoas que morreram jovens. E tragicamente. Hoje eu me sinto próximo de Antonin Artaud. Sempre gostei dele. Quando eu era estudante, alugava um quarto de Jean Schlumberger na Rue d'Assas, em Paris. Uma noite, em 1947, André Gide veio buscá-lo para levá-lo a um sarau. "Permitem que os acompanhe?" Eu me vi no teatro do Vieux-Colombier, onde assisti à famosa conferência "Tête à Tête", de Antonin Artaud. Ele dizia que não sabia escrever, mas que escrevia mesmo assim, e que era preciso resgatá-lo, publicando o que escrevia. Acontece que sempre pensei que eu não sabia filmar. As pessoas não acreditam em mim, porque conheci o sucesso uma ou duas vezes. É a mesma coisa que com Artaud. A diferença é o dinheiro.
Pergunta - Mas o sr. sofre com a solidão?
Godard - Solidão não é a mesma coisa que isolamento. Sempre somos dois em um. Os outros estão em nós. Quando a solidão vira isolamento, é duro suportar.
Pergunta - É seu caso?
Godard - Um pouco.
Pergunta - O sr. sofre com isso?
Godard - Um pouco...
Pergunta - Mas foi o sr. quem quis assim!
Godard - É verdade. Encontro poucos companheiros à minha altura, com quem jogar tênis e conversar depois. Sinto necessidade de esporte, mas não sob o ângulo voluntarista. O importante é o mental. A partir do momento em que você pensa que joga, passa a jogar mal. É como a morte de Porthos em "Le Vicomte de Bragelonne", quando ele posicionou seu explosivo e deve voltar ao subterrâneo. Assim que ele começa a pensar que precisa pôr um pé diante do outro, não consegue mais se mexer. Porque tem consciência do que faz. O castelo desmorona. Como ele é forte, resiste vários dias antes de sucumbir, esmagado por pedras.
Pergunta - Quer dizer que Alexandre Dumas ajuda na hora de jogar tênis?
Godard - Felizmente temos livros, temos filmes. Mas os filmes são difíceis de se encontrar, são mal distribuídos. O livro é um verdadeiro amigo. Ele é sozinho. O filme só é companheiro no pensamento. É preciso ir até ele e passar por uma máquina. Os livros estão disseminados à nossa volta, podemos tocá-los.
Pergunta - O que a literatura lhe dá que o cinema jamais poderia lhe dar?
Godard - Ela me dá o livro, justamente. Com o livro, podemos voltar atrás. Na literatura há muito passado e um pouco de futuro, mas não há presente. No cinema só há presente, que não faz mais do que passar. Na tela, o presente é aquilo que nos é apresentado no momento em que vai embora. Tudo isso é irmão e irmã. Escrever, pintar, pensar... Nessa família da arte, o cinema continua sendo um estrangeiro, um imigrante, um criado. Ele se torna amigo da família. Sou. Entretanto, me sinto inferior a todos os criadores a quem amo. Isso não me incomoda. Sei que estou nesse mundo. Eles têm direito à sala, eu, à ante-sala. Não porque faço filmes. O cinema está sozinho, enquanto os outros estão juntos. Ele vem de um lugar que eles não haviam visto.
Pergunta - É por isso que um filme e um livro jamais terão a mesma condição?
Godard - Não sei. Um filme modesto, um filme mediano, sempre estará no mesmo domínio que os maiores filmes. Tudo é cinema. Mas um romance mediano não faz parte da mesma literatura que os grandes romances. Não estou me explicando bem, mas é isso o que sinto.
Pergunta - Mas, concluindo, o que a literatura trouxe ao sr.?
Godard - Uma maneira mais experimental de pensar. O cineasta pensa com os olhos e os ouvidos, o pintor, com as mãos. A literatura é um refúgio. Ela aprofundou minha visão do mundo. Os livros me disseram coisas que os vivos não me diziam. A literatura pesquisou o mundo. Nesse sentido, ela me deu uma lição de moral artística. Devo isso a ela: uma consciência moral. Contra a palavra do Estado, do governo ou do poder, ela é uma palavra. Não a palavra dos partidos, mas a dos homens, um a um. Os livros são escritos um a um. Também faço filmes um a um, porque Kafka nos pediu que fizéssemos o positivo com o negativo. A literatura foi minha madrinha. Eu a reencontro depois que me meto a ler intensamente. Os filmes já não me traziam esse contato com o real.
Pergunta - Desde quando?
Godard - O cinema anunciou a existência dos campos de concentração -você se lembra de "A Regra do Jogo", "O Grande Ditador"... Mas não os mostrou. Foi a literatura quem o fez. O cinema deixou de cumprir seu dever, fracassou em sua missão.
Pergunta - E para exprimir a felicidade, qual dos dois está melhor posicionado?
Godard - Hoje em dia, o cinema mergulha as pessoas no engano, na satisfação. Há pouco o que se esperar. As pessoas não precisam realmente disso. Elas vão ao cinema porque assim podem sair de casa. Isso lhes dá algo de romanesco sem esforço, muito distante e muito inferior a Graham Greene.
Pergunta - De tanto estar à margem, o sr. não tem medo de sair da página?
Godard - Sou marginal, sim. Isso é uma constatação. O risco não é de sair, mas de cair da página. Ter a escolha entre o suicídio e a ultrapobreza. Não é esse o caso, mas não estou tão longe assim disso. Porque tudo pode parar no dia seguinte. Quer eu seja reconhecido como margem ou como página plena, continuo fazendo parte do caderno. Por enquanto.

Tradução de Clara Allain.

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