São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Paulo Emilio ensina a ver 'A Chinesa'

PAULO EMILIO SALLES GOMES
DA REDAÇÃO

Procuro entender por que tanta gente encontra dificuldades com "A Chinesa". Minha hipótese de trabalho é a de que são necessárias três condições para uma pessoa gostar do filme:
a) gostar muito de conversa;
b) gostar profundamente de teatro;
c) gostar razoavelmente de política.
a) A conversa. Eu ainda ensinava na Universidade de Brasília quando adquiriu volume o interesse pelos filmes baseados em entrevistas. Meus alunos e eu não nos satisfazíamos com as denominações dadas ao método, "cinema verdade" ou "cinema direto". Acabamos decidindo que "cinema-conversa" seria a designação mais apropriada. Nosso entusiasmo por "Integração Racial" foi grande e quando o realizador desse documentário, Paulo Cezar Saraceni, lançou "O Desafio", foi muito bom encontrar num filme de ficção aquela interminável conversa política, na sequência da redação da revista.
Esse cinema nos atraía muito porque estávamos convencidos do fascínio que encerra o simples registro de uma pessoa que fala e cuja fluência ou constrangimento sejam igualmente espontâneos. Espontaneidade documental ou ficcional, pouco importa. É fácil sentir como esse gênero de fala, sem comprometimento dramático definido e imediato, se opõe ao diálogo habitual.
"A Chinesa" espera de nós que encontremos prazer em ser espectadores de conversa, sem obrigação ou desejo de interferir. Nosso gosto já se encontra, aliás, apurado pelas múltiplas experiências do cotidiano: as linhas telefônicas cruzadas, as conversas ouvidas nas filas, nos ônibus, nos cafés e balcões.
b) O teatro. O moderno espetáculo teatral nos obriga cada vez mais a refletir sobre sua natureza, pois deliberadamente se desagrega diante de nossos olhos... O teatro não pretende mais enganar ninguém. É através do desengano que procura nos atingir. É um jogo claro com regras expostas. "A Chinesa" espera que essa experiência tenha nos preparado para vê-la. Não é à-toa que Godard se interessa especialmente pelo destino de Guillaume, o ator, e que durante as conversas se fale tanto em teatro. "A Chinesa" vai mais fundo, porém. As passagens dramaticamente mais eficazes, como a sequência da guerra do Vietnã, decorrem da profunda sacudidela sofrida pelo teatro. Essa subversão fez vir novamente à tona, em toda sua pureza, os dados simples e essenciais do jogo teatral. É um jogo, uma brincadeira, e precisamente por ser tão infantilmente "de mentira" é que nos atinge tanto o lamento de Yvonne: "Socorro, senhor Kossiguine, socorro...".
c) A política. Nesse terreno o noticiário a respeito da França constitui um preparo até excessivo para o espectador de "A Chinesa". O filme tornou-se tão atual que o público se inclina a levar um pouco a sério demais, como revolucionários, aqueles jovens que tanto falaram e ocasionalmente mataram ou se mataram.
Como também não são fundamentais tantos outros nomes, imagens, citações e o próprio cinema, o tal famoso Cinema com C maiúscula com o qual "A Chinesa" nada tem que ver. Que alívio!

Texto publicado originalmente em "A Gazeta" (SP) e republicado no livro "Um Intelectual na Linha de Frente" (Ed. Brasiliense).

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