São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Um auto-retrato no negativo

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DO MAIS!

"JLG por JLG", que se denomina também "Auto-retrato de Dezembro", é um pequeno filme de pouco mais de uma hora, ambientado principalmente em um apartamento comum na Suíça, com dois ou três atores.
Por tratar-se de um auto-retrato e não de uma autobiografia, Godard não tem exatamente uma história para contar a respeito de si mesmo. Ele não encarna o personagem Godard, dele ou nosso.
Não sendo a encarnação de um personagem, Godard não é também um ator do filme, mas só uma imagem que se expõe, entre outras, como uma cadeira ou uma janela. No filme, sua presença física é quase sempre fugidia, espectral, frequentemente um vazio, uma ausência.
Onipresente é sua voz, esta sim o corpo principal de "JLG", em jogo com as massas visuais e os outros elementos sonoros.
Esta voz não é uma voz homogênea e subjetivada a desfilar um rosário de impressões ou revelações pessoais -o que é pessoal aparece sempre "em negativo", como o retrato do Godard-menino.
A voz é um composto heterogêneo de sons deformados, fragmentados, gemidos, suspirados, materializando séries variadas de palavras, frases, citações -sem dono. Um sistema polifônico, ao contrário do modelo do "porta-voz", porque não fala em nome de outro: é voz sem nome, sem origem, praticamente sem diálogo, uma forma de esvaziamento de si.
Se não é possível reconhecer exatamente de onde se fala e quem fala, a voz no entanto é a principal responsável pela construção de um espaço sonoro-visual, a "linguagem", tomada no filme ora como exílio, ora como promessa de universalidade, ora como o lugar onde se habita, uma morada.
Nesta morada, desenvolve-se um melancólico processo de meditação a respeito do cinema, da Europa, do pensamento, da própria linguagem, da solidão.
"JLG" é uma meditação. Um filme-meditação. Uma ousadia, portanto, uma vez que Godard postula fazer algo que parece impossível no cinema ("arte" das imagens mais que das palavras em movimento) e que caberia melhor num texto literário.
Devido à flexibilidade e à heterogeneidade desta arte, contudo, e mais ainda à coragem de Godard, esta meditação torna-se possível, valendo-se de várias formas alheias ao próprio cinema, que se mesclam, se conflituam e se acordam.
Como "texto" e "escrita", o filme recorre à forma poética da elegia para desenvolver seu tom, e utiliza da prosa a tradição do provérbio, da máxima, do aforismo e da lição para apresentar suas reflexões.
Como "música", é como se orquestrasse um longo solo.
Como "teatro", constrói-se às vezes feito um monólogo pseudodidatizante -a paródia de uma aula-, outras vezes como fiapos de diálogos, entre o burlesco e o patético.
Estes elementos todos articulam-se numa construção complexa, materializada no filme graças à sofisticada montagem visual e sonora -trabalho no qual Godard é mestre.
Nos anos 60, na época da "revolução godardiana", dizia-se que Godard desafiava a forma clássica do cinema ao fragmentar a imagem e romper com o causa-e-efeito da ação (o que permite que alguém apareça abrindo uma porta em uma cena e fechando a mesma porta em outra cena).
Neste filme não está em jogo a fragmentação, mas a conjunção dos vários componentes da linguagem do cinema (imagem, fala, música, ruído etc.) num sistema singular de atritos e dissonâncias, que não é fruto nem de um formalismo diletante nem de uma fidelidade ao próprio estilo.
O "atrito" ocorre porque a conjunção é feita entre elementos que estão à maior distância (plausível, calculável, legível) uns dos outros. Assim, Godard julga ultrapassar a simples visibilidade (espetacularizante) à qual parece condenado o cinema e alcançar uma espécie de "vidência" -não esotérica, mas filosófica-, que aproxima a linguagem cinematográfica das formas do pensamento.
A montagem é o meio de alcançar esta dimensão. Ela não visa a agredir, romper, torturar, mas a estabelecer relações complexas que permitam ao espectador vencer a presentificação sufocante do cinema, a sua fatalidade especular, e desenvolver processos mentais, iluminações.
Tarefa sem dúvida difícil, e até ingrata, dada a resistência da tradição, do público, da mídia e da indústria do cinema.
Todo este filme medita principalmente sobre a morte, mas não é um filme lúgubre. É apenas triste, porque a morte ainda não ocorreu. É um trabalho de luto sobre a morte prenunciada: "Há a morte que chega, e depois se começa a fazer o luto; eu não sei exatamente por que, mas fiz o inverso".
Mas que morte Godard estará pranteando, e tão prematuramente?
Como tudo em Godard, é a série que importa: a morte da Europa, da arte de viver, do cinema, do poder da palavra, da política, do cinema, da língua, da arte. Série de mortes, cujo drama ele resume na fórmula: "Todos dizem a regra, ninguém diz a exceção... É próprio da regra querer a morte da exceção".
A prenunciação da morte é um pessimismo estratégico: uma visada lançada sobre a história desde o lugar da exceção. É uma manobra capaz de pôr "no negativo" o presente, a fim de dar-se conta do próprio momento, de realizar sua crítica, de não se deixar levar pela regra e ser capaz de merecer seu nome próprio.
O merecimento do nome próprio (a exceção) só se dá após a morte do que em si mesmo fala com a voz da regra (da cultura). É uma espécie de ato sacrificial, em nome do amor -"amor fati", como este filme assombroso nos sussurra: "É preciso que eu me sacrifique para que, por meu intermédio, as palavras de amor ganhem sentido, para que haja amor na Terra. Em recompensa, ao termo desta longa empreitada, acontecerá que eu seja aquele que ama, quer dizer, que merece enfim o nome que eu me havia dado".

Filme: JLG Por JLG - Auto-retrato de Dezembro
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França, 1994, 63 min

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