São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Os dez mil disfarces

DIONISIO NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O corpo de Brigitte Bardot dissecado. Esta é a primeira imagem que vem à minha mente quando me lembro de "O Desprezo" ("Le Mépris", 1963). A deusa grega, (POP)enélope, senhora de qualquer beleza, completamente entediada, questiona-se sobre a legitimidade estética das curvaturas de seu corpo. Ironia maior somente a dos próprios deuses gregos que rondam o filme, ou da posição forjada, com maestria, do acidente de carro seco que simula, como tudo, a presença da tragédia grega, em busca de Homero perdido no mar de Capri -a sombra da História da Cultura Ocidental.
Mas não é metafilme, o que aparentemente indica Fritz Lang no papel dele próprio, Jack Palance como produtor americano, o roteirista em crise. Em nenhum momento o filme fala do filme. A resolução deste limiar entre ficção e metaficção chega a um terceiro ponto que é a obra em si. E aqui estou falando não só de um grande autor de cinema, desses que levam a sério suas ambições poéticas sem se corromperem mediocremente pelas tais "leis de mercado", ou, pior, pelas obscuras "leis dos críticos", mas de um grande artista, inventor de um vocabulário próprio, o godardiano.
E o filme transborda em citações disfarçadas de linearidade cartesiana de causa-e-efeito, pois que, influenciando, e muito, Glauber Rocha, o diretor não trabalhou com um roteiro detalhado, criava no caos, junto dos atores, misturando citações orientais, ocidentais, pops, eruditas -utilizando-as como ponto de discussões sobre o fazer artístico.
Há citações o tempo todo. A citação da citação da citação com assinatura única que chega a um resultado inédito. É profético ao apontar para o beco sem saída que nos obriga a ter outros novos olhos para o passado e para o mar ou, mesmo, a reformular a composição genética deste órgão via ultraneoclonagens, por meio da ação, pois nada mais difícil do que resolver nela uma idéia, principalmente em se tratando de cinema ou teatro. Aqui temos o "vazio existencial" transfigurado em movimento dramático. E isso é dificílimo de se fazer sem que se caia em explicações teóricas para suprir uma falha que não se resolve na cena, ou num conceitualismo autocomiserativo.
Tudo isso para falar de um sentimento humano, rechaçado pela correta moral conservadora da morte tímida e sem poesia que "abutra" produções cinematográficas, e elevá-lo à categoria de sentimento divino. Surpresa foi saber que o verso "sempre que ouço a palavra 'cultura', saco meu talão de cheques", de uma música da extinta banda Fellini, teve suas origens aí. Ainda chamo o acaso de Deus.

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