São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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O mito em estado puro

ROGERIO SGANZERLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos mais enigmáticos e desconcertantes filmes não só deste exímio diretor como da própria história do cinema de arte -e tão pouco conhecido devido à exiguidade dos catálogos em vídeos- chama-se "Viver a Vida" ("Vivre Sa Vie", 1963) e marcou a presença insólita da fase fenomenológica do cinema segundo Godard. É uma obra-prima do conhecimento ontológico, uma rara abstração do mais puro cinema, pois põe o mito ao alcance da total visibilidade ocular.
Nada de conceitos e preconceitos -apenas seres e objetos situados ao nível do olho e da câmera à altura da sensibilidade humana, vale dizer, à altura de sua própria desenvoltura. Uma insolência atrás de outra. O que é o cinema? Misteriosa verdade a 24 quadros por segundo. Os amorosos amam, os assassinos matam, os ladrões roubam...
O que é uma mulher? Ele já tinha respondido no musical "Uma Mulher É uma Mulher", em som direto e cinemascope.
O que é a vida? Um prato é um prato, os homens são os homens e a vida... é a vida.
Parodiando Gertrude Stein ("uma rosa é uma rosa é uma rosa"), Jean-Luc Godard aboliu toda interpretação sociológica, psicológica e moral diante do clichê da mulher que cai na vida para se defender, não beija seus fregueses na boca e no final é sacrificada por alguns desafetos parisienses.
A cortina da tela é rasgada para mostrar o mito em estado puro. Conhecendo profundamente a alma e o corpo de uma mulher, Godard evita os preconceitos sociológicos, as edificantes facilidades moralistas ou mesmo os lugares comuns da psicologia tradicional. Como analisar o comportamento de uma mulher que abriu todas suas portas, rendendo-se à coisificação da mais velha profissão, mas sem perder jamais sua ternura? Apenas o que interessa: a vida própria e sem especulações, pretextos e outras intelectualizações de seus atores-personagens: vultos, cartazes, automóveis, Anna Karina (então mulher do diretor), a cidade de Paris e o próprio espetáculo cinematográfico.
A fotografia em branco e preto de Raoul Coutard é esplendorosa, e a espantosa autonomia de câmera, circulando livremente em bares e bistrôs com um novo estilo de captação da realidade, é capaz de deixar qualquer cinéfilo babando. Como sempre, a montagem revela o que há de mais secreto na construção acumulativa de um filme dividido em 12 quadros, nivelando por baixo a paixão de Joana d'Arc e a tragédia de uma prostituta na cidade-luz. Ver para crer. Quem não conhece esse filme não sabe o que é cinema. E muito menos o que é o instigante cinema de Godard, um dos raros deuses da mise-en-scène, ainda em atividade.

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