São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Um turbilhão sonoro

PÉRICLES CAVALCANTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vou comentar aqui um dos aspectos mais interessantes da obra cinematográfica de Jean-Luc Godard: suas trilhas sonoras.
Haveria muito o que dizer sobre aquelas dos primeiros filmes, que contavam com partituras especialmente escritas por Michel Legrand, para "Uma Mulher É uma Mulher" ("Une Femme Est une Femme", 1962), e por Georges Delerue, as cordas maravilhosas para "O Desprezo" ("Le Mépris", 1963), ou, ainda, podiam até incluir uma canção-rock dos Rolling Stones, como em "One Plus One" (1968). Mas quero me concentrar nas trilhas realizadas a partir de "Je Vous Salue Marie" (1985), para mim ao mesmo tempo mais ambiciosas, mais complexas e mais experimentais.
Numa entrevista recente, já nos anos 90, concedida a um estupefato Wim Wenders, Godard revelou que costuma utilizar, para mixar os sons de seus filmes, uma mesa com 24 canais, tal a quantidade de informação proveniente de origens diferentes que entra na composição total da trilha.
Essas "fontes de som" podem genericamente ser divididas em: a) sons colhidos na escuta da natureza -água, vento, cantos de pássaros etc.; b) sons dos diálogos ou dos objetos que fazem parte da cena, incluindo aparelhos de rádio, televisão e toca-discos; c) sons de textos pré-gravados; d) sons estritamente "musicais", que podem ser de Mozart, John Cage ou Leonard Cohen, entre muitos outros.
É importante observar que a combinação entre os muitos elementos e planos acústicos que cada fonte propicia se dá na montagem, de acordo com a necessidade de cada imagem ou sequência, ou inversamente, como em qualquer outro filme, mas nunca, como em Godard, com tamanha complexidade e invenção.
Assim é que uma fuga de Bach, o murmúrio de um riacho e uma locução radiofônica podem soar concomitantemente sobre uma cena bucólica ou suburbana. Uma campainha de telefone pode, alta e insistentemente, assombrar o silêncio de uma paisagem gelada, como em "JLG por JLG", ou o grito esganiçado de uma arara estremecer um ambiente clássico ou moderno, como em qualquer um desses filmes realizados por ele a partir de meados dos anos 80. E tudo sempre em função de um conjunto verdadeiramente sinfônico.
No plano filosófico, fundamental na concepção deste cineasta-artista, é como se a oposição entre natureza e cultura -idéia tão cara aos franceses- fosse, a todo momento, afirmada, negada, diluída, realçada, ultrapassada, relembrada, extrapolada e, por fim, transfigurada na composição de um universo íntegro, coerente e original.
Nessa medida, é exemplar um vídeo realizado por Godard em 1988, para a televisão francesa, chamado "Puissance de la Parole" ("Potência da Palavra", inédito no Brasil), cujo tema é, digamos, o poder de comunicação da palavra falada. Nele, no entanto, o personagem central é a Terra, o Mundo, a Criação. Aí encontramos gorjeios estridentes, águas e ventanias, telefones e buzinas, histórias de amores incompreendidos, ruídos sugerindo propagação de ondas eletromagnéticas, textos extraídos de literaturas de muitas épocas, sons clássicos, modernos ou simplesmente pop soando sucessiva ou simultaneamente, em grupos pequenos e grandes, compondo um turbilhão sonoro arrebatador, sobre imagens da supervisão-audição-transmissão de satélites de comunicação.
Desde Nouvelle Vague, e principalmente neste lindíssimo "JLG por JLG", Godard vem expondo seus sempre renovados métodos de trabalho de forma cada vez mais clara e didática. E é, há algum tempo, evidente para mim (que já o homenageei, integrando o som cru de um grito simulado de arara ao final de uma das faixas do meu disco "Canções", de 1991) que este cineasta singular é também um dos maiores compositores -no sentido mais amplo de organizador de sons- do nosso tempo, tal a sempre surpreendente riqueza, originalidade e força pulsante das trilhas que cria para os seus filmes.
E para concluir: como é linda, na sua simplicidade, estranheza e profundidade, a música utilizada na sequência final deste esclarecedor e brilhante auto-retrato de inverno!

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