São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Continuação da entrevista acima

Pergunta - O sr. leu as memórias de Brigitte Bardot? Ela o descreve como "um intelectual esquerdizante e desagradável", que não tirou o chapéu da cabeça em nenhum momento durante as filmagens de "O Desprezo".
Godard - Não, não leio coisas desse tipo. Sobretudo agora, depois das declarações dela. Antes, eu a achava até simpática, com seus bichos. Na época de "O Desprezo", nós nos demos muito bem, não houve nenhuma rixa, era muito agradável. O que ela escreve hoje é problema dela. Mas as lembranças de Bardot, isso não! Se fosse assim, eu preferiria ler as de Nadine de Rothschild. Prefiro ler as memórias de Jean-François Revel. Ou o último John Le Carré -isso satisfaria meu gosto pelos agentes duplos. Sempre me senti um agente duplo. A gente não vem da Terra, mas, mesmo assim, está nela. Le Carré é um mestre menor que não vale Graham Greene, que, por sua vez, não vale Joseph Conrad. Há pouco tempo reli "Brighton Rock". Muitas vezes os primeiros romances são os melhores, sempre retornamos a eles. Eu teria filmado "Brighton Rock" de bom grado. Impossível: é bom demais. Eu não poderia lhe fazer isso. Ele tinha muita força e eu não a tenho. Ele me teria dado forças. Quando adaptei Moravia, eu tinha força: aproveitei suas fraquezas para lhe tomar sua base.
Pergunta - O que o sr. achou de "Truísmos"?
Godard - Como o editor é amigo meu, pensei em conseguir uma opção sobre os direitos de filmagem por dois anos, sem pagar demais, mas agindo com correção. E eu dizia a mim mesmo que um dia, talvez, eu me interessaria...
Pergunta - Mas o sr. o leu ?
Godard - Mal li. Me pareceu difícil. Tentei revendê-lo a outros, mas ninguém se interessou. É pena que Marie Darrieussecq não seja cineasta. Sua idéia era original. Ela deveria ter feito um filme.
Pergunta - A imprensa anunciou que o sr. iria fazer o filme.
Godard - Por enquanto, não. Reli o romance três ou quatro vezes enquanto produtor, não mais apenas como diretor. E ele me pareceu ser não apenas difícil, mas caro. Talvez fosse o caso de fazer uma peça de teatro. Ou uma fábula. Tenho algumas idéias vagas de forma, de movimento, de momentos em cena. É particular demais. Talvez fosse mais o caso de fazer um desenho animado.
Pergunta - Por causa da metamorfose?
Godard - Não, nem isso. Bastaria dizer que a mulher se transforma em porca. Mas será que isso se seguraria durante uma hora? É o ponto em comum entre o cinema e o teatro: a preocupação com o olhar do outro, as condições nas quais ele se exerce. Não temos o direito de zombar.
Pergunta - Do mundo?
Godard - De nós mesmos.
Pergunta - Quer dizer que o sr. acha "Truísmos" inadaptável?
Godard - Talvez essa seja a prova de que é um bom livro.
Pergunta - Essa é sua teoria geral sobre a transposição de romances?
Godard - É minha teoria.
Pergunta - Não existe um grande romance que tenha dado um grande filme?
Godard - Estou pensando... não, não vejo nenhum.
Pergunta - E "Lolita", de Stanley Kubrick?
Godard - Médio. De qualquer modo, Nabokov não é um grande romancista.
Pergunta - Mas o que é um grande romancista?
Godard - É Mme. de La Fayette. Estou relendo "A Princesa de Clèves", pensando num projeto de filme sobre o amor e o Ocidente. Balzac, Stendhal, Flaubert, Tolstói, Dostoiévski, Dickens, Thomas Hardy, Meredith, Virginia Woolf, os grandes americanos... Esses são escritores, há 20 deles que quebram tudo. Eles têm um estilo, ou seja, um lugar onde a alma descansa, enquanto Günther Grass ou John Le Carré têm apenas talento.
Pergunta - Seguindo seu raciocínio, diríamos que, se "O Desprezo", de Godard, foi um grande filme, é porque "O Desprezo" não foi um romance muito bom.
Godard - Seu único livro bom foi o primeiro, "Os Indiferentes". Ele anuncia todo o cinema de Antonioni. Então, por que "O Desprezo"? Porque o produtor Carlo Ponti detinha os direitos.
Pergunta - Uma encomenda?
Godard - Eu suscitei a encomenda, como em todos os meus filmes. Eu havia me sentido medianamente motivado pelo romance. Portanto, poderia fazer qualquer coisa com ele. Quando é muito bom, não se pode fazer nada. Prova disso: o que Schloendorff fez com "Um Amor de Swann", ou o que James Ivory fez com "Os Bostonianos", de Henry James. As obras-primas devem ser lidas, não filmadas. Quando se tem romances medianos, como os de Hammett ou de Chandler, é possível fazer um filme. "Ouro e Maldição" ("Greed"), de Erich von Stroheim, é um bom filme porque o romance de Frank Norris não é grande coisa. John Ford tomou posse de "Caminho Áspero" ("Tobacco Road"), de Erskine Caldwell, não foi seu melhor trabalho. Houve uma época em que um King Vidor pôde se inspirar em "Babbitt" porque Sinclair Lewis não era Faulkner.

Continua à pág. 5-6

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