São Paulo, sábado, 16 de agosto de 1997
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Há lugar para o sagrado na educação

MARISTELA GUIMARÃES ANDRÉ

O debate sobre a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas não pode ser levado sob o viés de nossa racionalidade fragmentada, séria advertência para quem quer estar em dia com as novas tendências.
Apesar de tratar-se de questão política, porque diz respeito aos interesses diretos de determinadas corporações pelo monopólio dos "bens religiosos"; de questão social, porque relacionada aos direitos do cidadão e aos princípios liberais que os iluministas procuraram demarcar; e de questão educacional, porque interfere na grade curricular, na formação de professores e nas condições e necessidades concretas das escolas, o ensino religioso é algo mais amplo, mais abrangente e, por isso, carente de discussões mais profundas.
O debate, da forma particularizada como vem sendo travado, só tem servido para alimentar esses aspectos, sem oferecer possibilidades para alunos, pais, professores e administradores agirem criticamente.
O ensino religioso já ocorre de modo sistemático, por intermédio da mídia e das instituições religiosas, e de modo assistemático, no processo interno de cada formação social, visto que não há sociedade sem alguma prática religiosa.
Afinal, qual a "humanidade" que se aninharia numa espécie concebida sem a dimensão religiosa? Qual a área do conhecimento que desconsidera a fonte teologal em que nasceram alguns dos caminhos do pensamento?
As famílias (e os cidadãos) têm o direito de decidir sobre suas crenças e opções de fé. Seus membros (e sua sociedade) têm o direito de ter acesso às informações que lhes ofereçam condições de ampliar e desenvolver as fontes de conhecimento que tornam possível o processo de vida, das básicas às mais complexas, que envolvem o pensamento crítico e criativo.
A religião não está fora nem à margem desse processo porque, em se tratando da vida e do sentido que damos às nossas ações, somos forçados a encarar o caráter sagrado de que nossas intencionalidades são constituídas.
Somos forçados a responder por que e para que queremos conhecer e saber das coisas. Por meio dessas respostas, anunciamos para as demais pessoas e, principalmente, para nossas crianças o que significa ser "humano" e, em contrapartida, o que é ser "desumano".
O debate político que se trava em torno do ensino religioso denuncia-nos que ele pode afetar o imaginário coletivo de nossa sociedade a ponto de atingir as instituições.
Denuncia mais. Pode pôr à mostra o cinismo de nossos princípios de cidadania não tão liberais. Isso porque não é o acesso à educação de dimensão religiosa que está sendo negado, mas a possibilidade de nossas crianças reconhecerem-se como iguais não só perante a lei, mas perante o outro.
O debate educacional escondido por detrás das deliberações e portarias que pretendem regulamentar o ensino religioso denuncia-nos que ele pode abalar alguns dos paradigmas do conhecimento ensinado nas escolas.
Talvez porque venha a introduzir nas atividades letivas outra razão para o fazer e o saber das coisas, que não se esgota nos ideais políticos, não se define pelos critérios científicos e não se experimenta nas avaliações teóricas, traduzidas simplesmente na palavra "fé".
Ainda temos que conversar, e muito, sobre a presença do ensino religioso no currículo das escolas. Discussão que não deve ficar segregada a professores, jornalistas, escritores, religiosos e demais especialistas.
Essa é uma discussão de toda a sociedade. Por meio dela talvez tenhamos a possibilidade de vislumbrar um modo de educar nossas crianças para a vida e não para a morte.

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