São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 1997
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Salário, inflação e pobreza

ANDRÉ LARA RESENDE

Há temas que são especialmente polêmicos, capazes de acender de tal forma os ânimos que o debate racional fica prejudicado. Salário, emprego e organização do mercado de trabalho é um deles. Fiz, há algumas semanas, alguns comentários sobre o assunto. Reconheço que não fugi à regra: também não fui capaz de escapar à tentação da polêmica. É, contudo, impressionante, por qualquer critério, o número de manifestações enfáticas, contra, a favor e muito pelo contrário, que recebi.
De Eliana Cardoso, competentíssima economista hoje radicada nos Estados Unidos, mas que nunca deixou de acompanhar o país e esteve por um breve período, já neste governo, no Ministério da Fazenda, recebi uma nota interessante. Em "Quem paga o imposto inflacionário?", Eliana argumenta que a maioria dos analistas e dos formadores de opinião aplaude, com razão, os progressos observados desde o Real. Os críticos, entretanto, chamam a atenção para os resultados modestos obtidos no esforço de equilibrar as finanças públicas.
Segundo ela, os economistas brasileiros há tempos identificaram na inflação um poderoso instrumento para mascarar a fragilidade fiscal. As receitas tributárias eram quase que totalmente indexadas e, portanto, defendidas da erosão inflacionária. Já as despesas orçamentárias, sempre fixadas de acordo com uma previsão otimista da inflação, terminavam por ser, em termos reais, significativamente inferiores aos valores orçados.
A inflação fazia, adicionalmente, o papel clássico de transferir recursos para o governo por meio do chamado "imposto inflacionário" sobre o estoque de moeda. A estabilização devolveu à população grande parte desse imposto. Quem foram os beneficiários? A resposta tradicional é que os pobres foram os mais beneficiados.
Os ricos, com acesso aos sofisticados instrumentos do mercado financeiro, sempre estiveram ao abrigo do confisco inflacionário. Eliana argumenta, entretanto, que se sobre os 20% mais pobres dos brasileiros, que detêm aproximadamente 2% da renda nacional, tivesse recaído a maior parte do imposto inflacionário, que chegou a atingir 4% do PIB, eles não teriam sobrevivido.
Ainda assim, é possível que a parte que lhes coubesse, apesar de pequena em relação ao todo, representasse uma parcela significativa de suas rendas.
Eliana argumenta que não: os trabalhadores sem qualificação nunca chegaram a reter moeda suficiente para perder parte substantiva de suas rendas por meio do imposto inflacionário.
Como explicar então a substancial redução da pobreza urbana após a estabilização? A tese de Eliana é de que houve um significativo aumento de salários nominais, inclusive do salário mínimo, que não foi corroído pela inflação.
Sem inflação, as despesas públicas aprovadas não podem ser reduzidas e os aumentos concedidos de salários não podem ser revertidos pela alta dos preços. Déficits fiscais e altos salários implicam déficits externos.
A grande questão, afirma Eliana, é saber se os salários são sustentáveis nesses níveis. Se, como aposta o governo, os ganhos de produtividade serão suficientes para justificá-los ou se outro tipo de ajuste se fará necessário. Desvalorização cambial, alguma inflação ou o desemprego crescente são algumas das desagradáveis alternativas. Mas aqui já estamos entrando em terreno ainda mais polêmico.

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