São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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A privatização da política salarial

ALOIZIO MERCADANTE

O Estado brasileiro sempre teve um papel determinante na gênese e funcionamento da estrutura sindical e em todo o sistema de negociação coletiva construídos por Getúlio Vargas, a partir dos anos 30.
O mercado de trabalho no Brasil foi formado, ao longo do processo de industrialização, por um edifício institucional que contou com participação decisiva do Estado na sua articulação e controle. Porém, neste mercado de trabalho os sindicatos corporativos e atrelados ao Estado tiveram por muitas décadas o papel de expressar as demandas sociais dos trabalhadores frente aos empresários e o Estado, ainda que de forma restringida e controlada pela presença marcante do Estado e da Justiça do Trabalho em todo o processo.
A ditadura militar que se instaura, a partir de março de 1964, inaugura um novo padrão de intervenção do Estado no mercado de trabalho, ou, mais precisamente, redefine desde então o papel do Estado na solução da oposição salários/lucros e na sua reposição. Essa contradição, condicionada pelos limites impostos pelo padrão histórico de acumulação de capital, passa a se resolver e a se opor no interior a partir do Estado.
O regime militar estabelece um padrão autoritário e centralizado de intervenção no mercado de trabalho. Em primeiro lugar, intervém em 2.000 sindicatos cassando, prendendo e afastando lideranças sindicais. Por meio da repressão direta e violenta, desarticula organicamente a representação sindical dos trabalhadores. É nesse cenário que começa a ser definido um novo arcabouço jurídico institucional autoritário e centralizado que inviabiliza o controle social das partes contratantes, assumindo o Estado o papel de outorga compulsória de todas as decisões fundamentais relativas ao conflito capital/trabalho.
Esse processo será acompanhado pela implantação do FGTS com o fim da estabilidade e pela definição de uma política salarial, que, longe de ser apenas um instrumento de política antiinflacionária, cumprirá um papel decisivo no padrão concentrador de distribuição de renda que modelará a estrutura de consumo e produção do país.
Essa legislação é introduzida pela circular nº 10 do Gabinete Civil, de 19 de junho de 1964, seguida pelos decretos-leis nº 54.018 e 54.228 e pela lei nº 4.725, de julho de 1965. Nesse primeiro momento são disciplinados os reajustes salariais do setor público, depois os mesmos parâmetros salariais são apresentados como recomendações para as decisões da Justiça do Trabalho e, finalmente, as novas medidas legais estabelecem uma fórmula de reajuste pelo salário médio real que é imposta à Justiça para todas as decisões sobre salários.
Quando analisamos essa política salarial autoritária e centralizada, que elimina o papel dos sindicatos e o próprio poder normativo da Justiça do Trabalho, podemos verificar que ela nasce no contexto de uma política de estabilização monetária definida pelo Paeg (Roberto Campos e O. G. Bulhões), que pretendia cortar demanda agregada, arrochando salários. Porém, logo a seguir, com a virada no diagnóstico de "inflação de demanda" para "inflação de custos", que levará Delfim Netto ao Ministério da Fazenda, iniciando uma retomada do crescimento e um auge econômico, a política salarial é mantida na sua essência, contrariando o sentido geral da política econômica expansionista e revelando seu caráter estruturante do modelo de crescimento concentrador de renda.
Desde então a política econômica sofreu inúmeras inflexões, mas a política salarial do governo sempre esteve presente como instrumento de política econômica e definindo limites na determinação dos salários pelo mercado.
O novo sindicalismo que emerge das grandes greves de 1978 a partir do ABC irá quebrar esse padrão autoritário e ampliar os espaços políticos e institucionais de participação dos sindicatos nas negociações salariais. A Justiça trabalhista irá recuperar seu poder normativo e as greves terão um papel decisivo nas negociações, em um contexto de inflação elevada e baixo nível de atividades que marcaram a crise da dívida nos anos 80.
O novo sindicalismo criará a CUT, outras centrais serão formadas e as mobilizações sindicais crescem por todo o país, mas os trabalhadores não romperam historicamente com a estrutura sindical oficial nem conseguiram constituir um novo arcabouço institucional de negociação direta, como propunham com o contrato coletivo de trabalho nacionalmente articulado.
O projeto neoliberal articulado pela coalizão conservadora que sustenta FHC mantém intocada a estrutura sindical oficial e todos os demais instrumentos de controle sobre os sindicatos e de intervenção nas negociações coletivas. Mas silenciosamente elimina a política salarial e com ela qualquer intervenção do Estado no processo de determinação dos salários.
Essa estratégia, coerente com o projeto neoliberal de desregulamentação da economia, transfere a determinação dos salários diretamente para o mercado e, nele, para a correlação de forças entre trabalhadores e empresários, em um cenário de baixo nível de atividades, juros altos, aumento brutal de produtos importados e desemprego em massa. A ênfase exclusiva e desproposital na estabilidade monetária com âncora cambial, sem quaisquer medidas que promovam a expansão dos investimentos e a retomada do crescimento da economia, acompanhadas pela privatização da política salarial, projetam um quadro de rápida deterioração das condições de trabalho, rebaixamento salarial e fragilização do movimento sindical.
Os principais indicadores recentes do mercado de trabalho, em especial da pesquisa Seade-Dieese, a partir de 1994, revelam uma deterioração dos indicadores de emprego e salários. A maior parte da população ocupada está ganhando menos, em empregos formais ou informais. Todas as faixas de renda perdem rendimentos de 1995 para cá e aumentam as desigualdades entre rendimentos dos ocupados e dos assalariados.
Aumenta a migração forçada dos trabalhadores assalariados de empregos formais com carteira de trabalho assinada para empregos informais ou sem carteira. Há redução significativa dos postos de trabalho na indústria, e os que migram forçosamente para o setor serviços, quando são absorvidos, tendem a receber salários menores. Há um empobrecimento do conjunto da classe trabalhadora após 1994, especialmente na Grande São Paulo, onde os dados são mais completos e disponíveis.
O governo FHC privatizou a política salarial, mas manteve todos os mecanismos de controle sobre o movimento sindical e que impedem a livre negociação com direitos sindicais e contrato coletivo de trabalho. Não há mais qualquer compromisso ou instrumento do Estado para intervir no perfil de distribuição de renda do país. O mercado é o único espaço social de determinação dos salários.
Os sindicatos continuam submetidos a todos os mecanismos de controle do Estado corporativista dos anos 30 e não há qualquer avanço em direção ao contrato coletivo de trabalho. A liberdade para o projeto neoliberal é liberdade para o capital, e a privatização da política salarial, nessas condições históricas, agravará ainda mais o perverso padrão de distribuição da renda no país.

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