São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Galdino e o último consenso

LUÍS NASSIF

Um dos temas mais fascinantes das modernas sociedades democráticas -pano de fundo do caso Galdino- é a superação dos consensos pela administração das divergências.
Mesmo em sociedade, a vida é basicamente solitária. A maneira de as pessoas se fortalecerem e superarem o isolamento é se constituírem em grupos. Em momentos de profundas transformações sociais e econômicas, a tendência ao consenso aumenta agudamente.
Sentindo a velha ordem fugir-lhe aos pés, as pessoas aferram-se à primeira idéia que julgam agregadora e tomam-se de ódio contra qualquer tentativa de ameaçar a falsa segurança que julgam ter obtido.
A história está prenhe de exemplos.
Na década de 30, o desmonte das antigas estruturas econômicas -somado ao florescimento da moderna indústria de comunicação de massa (rádio, cinema e jornais)- permitiu o surgimento do nazi-fascismo. Nos EUA, resultou no "New Deal", mas também na Lei Seca e, após a guerra, no macarthismo.
No século passado, a (hoje) odiosa e homicida Guerra do Paraguai foi a maneira encontrada pelo Império para estabelecer esse consenso nacional.
Administrar divergências
Até algumas décadas atrás, o papel de "pensar" pelo grupo, em direção ao consenso, cabia a partidos políticos, sindicatos e associações em geral.
À medida que as sociedades democráticas avançam e se sofisticam, há o aparecimento de muitos grupos de interesse, uma rede social que aumenta a segurança individual e meios de comunicação que passam a expressar melhor a soma de interesses divergentes da sociedade. O consenso vai sendo pulverizado, cedendo lugar a uma espécie de soma de divergências.
Representantes dos negros, das mulheres, dos índios, de faixas etárias, de minorias sexuais, de regiões, cada qual passa a organizar e a expressar suas demandas diretamente -que podem ser conflitantes entre si- sem a mediação dos partidos.
A arbitragem desses interesses divergentes pode se dar no Congresso, no Judiciário e -especialmente- na imprensa. Ao reconhecer os direitos do setor A ou criticar os privilégios do setor B, à imprensa cabe o papel de apaziguadora das divergências e de limitadora dos abusos.
Não cabe a ela atropelar as divergências, mas expô-las de maneira competente e tolerante, permitindo aos diversos setores entenderem as razões uns dos outros -e, por meio desse processo, estabelecer pactos sucessivos que vão definir, de maneira dinâmica, as mudanças no perfil da sociedade.
Mudanças e insegurança
O Brasil atravessa o mais rápido período de transformações da história. À esquerda e à direita, os consensos estão sendo destruídos um a um. Além disso, a reestruturação da economia traz insegurança em relação aos empregos, aos salários e ao futuro de cada um de nós.
É nesse contexto que a mídia tem entrado de maneira excitada em um jogo perigoso em vez de consolidar o pluralismo: recuperar a idéia de consenso por meio da exacerbação de sentimentos.
O caso Galdino permite essa enorme celebração do consenso em torno de um sentimento menor, punitivo (não confundir com a aspiração à justiça, que é sentimento nobre), como foi com a Escola Base e tantos outros "consensos".
Leitores me escrevem: mas na Escola Base os acusados eram inocentes, enquanto no caso Galdino, são assassinos confessos. Até se descobrir que eram inocentes, os donos da Escola Base sofreram do mesmo massacre do consenso -que intimidava qualquer voz discordante.
No caso Galdino a discussão é simples na formulação (embora complexa na conclusão): ou os rapazes foram autores de crime intencional de morte, ou foram autores de crime de lesões corporais seguido de morte. Em ambos os casos merecem penas severas. É essa a divergência.
Mas, ao proferir sua sentença, opinando pela qualificação menos grave (embora grave), a juíza Sandra de Santis Mello atrapalhou o consenso. Ao defender que é possível que a juíza tanto esteja certa quanto errada, também atrapalhei o consenso. Até recebi algumas cartas propondo o linchamento de "jornalistas turcos" (ainda bem que esse tipo de leitor está do lado de vocês aí, que querem o linchamento, não do nosso, que queremos justiça).
O mais importante no episódio não é apenas saber se os rapazes são assassinos ou não. É constatar a enorme dose de intolerância que ainda povoa corações, mentes e mídia brasileiros. Não basta apenas linchar os linchadores de Galdino, mas a juíza e todos aqueles que ousem colocar em risco o consenso.
O que assusta esse pessoal é perceber que, em qualquer caso -mesmo nos mais abjetos, como o assassinato de Galdino- há argumentos conflitantes e consistentes a serem considerados, ângulos novos a serem observados e, especialmente, a constatação de que uma sociedade só se civiliza quando aprende a reconhecer os direitos até de frios assassinos.
Esse é um princípio tão velho, e, ao mesmo tempo, tão inédito, nesse nosso país, tão novo e ainda tão autoritário -mas que, quer queiram ou não, será uma sociedade moderna.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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