São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Sabiá sem palmeiras

DÉCIO PIGNATARI

São surpreendentemente nítidos os traços demarcatórios coincidentes entre a eclosão do movimento modernista paulista e brasileiro e o seu súbito apagar-se. O modernismo dos anos 20, como um todo, foi um manifesto fenômeno Pau(lista) Brasil e o tempolugar cultural nele ocupado e criado por Alcântara Machado só tem feito crescer... de uns 15 anos para cá. Graças, principalmente, aos contos de "Brás, Bexiga e Barra Funda". Como diria Oswald de Andrade, o pai apaixonado das aliterações do modernismo: "Há patriotas no Brás e no Brasil".
Na década do quarto centenário do descobrimento cabralino, respirava-se um certo aroma metropolitano de superação provinciana. A rua Direita, a rua São Bento, a rua Quinze -e seu logo famoso Triângulo- alçavam-se à altura da machadiana rua do Ouvidor. Afinal, a liberdade oficial do Brasil não fora operisticamente proclamada no Ipiranga?
Em poucos anos, tudo se passou e passou. As mudanças ocorreram a passo e compasso de um relógio subitamente apressado: do "crack" da Bolsa de Nova York à ascensão de Vargas, mal se passou um ano. As forças que animavam o universo ítalo-paulista -o mundo de Juó Bananére, Voltolino e Alcântara Machado- precipitaram-se na clandestinidade, como um relâmpago sorvido por um pára-raios, como que a um toque de comando, após a fracassada Revolução Paulista de 32:
"Paulistinha querida,
qual é tua cor,
que tanto disfarças
com teu pó-de-arroz?
Não és loira, nem morena,
não tens nada de mulata,
paulistinha querida:
a tua cor é trinta e dois."
Assim se cantava, sem muito curar dos subtons do subtexto, no Carnaval de 33, em Osasco, minha extensão infantil de "Brás, Bexiga e Barra Funda". Estava caracterizada a fissura Rio/São Paulo, que Alcântara Machado logo detectou e expressou num delicioso texto sobre os cariocas, constante de uma coletânea de crônicas póstumas, organizada por Sérgio Milliet ("Cavaquinho e Saxofone", Rio, José Olympio, 1940).
Os dois principais criadores/inventores do surto icônico-literário ítalo-paulista eram de famílias tradicionais; o caricaturista Voltolino, de ascendência italiana. Sob eles, dois grandes vultos, os Andrades, Mário e Oswald, este o fundador, antes ainda da Primeira Guerra Mundial, de "O Pirralho", pasquim satírico onde começou a brilhar, na seção "Cartas d'Abaxo Piques", o talento do engenheiro Alexandre Marcondes Machado, o Juó Bananére -poeta, barbeiro e jornalista... Mário foi para a língua, Oswald para a linguagem. Alcântara Machado ligou-se a ambos. No rompimento andradino, não tomou partido. Na linguagem, pendeu para João Miramar: "O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço" ("A Sociedade").
Retomando a marcação: 1933 (ascensão de Hitler), o repórter da terceira onda "mamaluca" faz os obituários de Juó Bananére e Voltolino. Havia de segui-los dois anos depois, mas ainda a tempo de assistir à fundação da USP e à internacionalização do ensino universitário no Brasil, à invasão da Abissínia pelas tropas fascistas e aos entreveros entre comunistas e integralistas, que Getúlio Vargas jogaria a escanteio com um toque de calcanhar. Então, em rápida sucessão, Guerra Civil Espanhola, anexação da Áustria pela Alemanha, Segunda Guerra Mundial. Em São Paulo, cidade e Estado, ninguém mais era ítalo-paulista. Paulistas e paulistanos adentraram o subsolo para reforçar as raízes da produção de riqueza, educação e cultura. Os resultados começariam a aparecer no pós-guerra, com a queda de Vargas. Seguiam eles, com e sem retórica, a vocação daqueles enormes sujeitos, os "mamalucos" da primeira onda, os bandeirantes. Organização civil não-estatal, obviamente paramilitar: entradas, bandeiras, monções.
Hoje vemos Alcântara Machado reafirmar-se lentamente, na literatura e na cultura brasileiras. É verdade que, ainda, como talentoso e prematuramente desaparecido cronista e contista paulista modernista. Ainda. No entanto, é o primeiro e, quem sabe?, único escritor brasileiro deste século (de outros, também?) a propor uma teoria coerente da prosa. Uma teoria da prosa em oposição (e contradição) à poesia, vinculada e vincada pelo jornalismo. Esta prosa tem por objeto indivíduos, não o indivíduo; a simultaneidade dos fatos, não o mergulho na mente de um protagonista. Escorava-se na paixão do jornalismo (do qual foi historiador "en herbe"), na prática diária da via da imprensa e na sua teoria das três ondas de "mamalucos", de natureza sócio-histórica.
Primeira onda: lusos & índios; segunda onda: lusos (& índios) & negros; terceira onda: lusos (& índios & negros) & imigrantes europeus, sírio-libaneses, japoneses -sublinhando a peculiaridade hegemônica do ítalo-paulistismo. Que haveria de desaparecer, segundo ele, com leve pesar, para dar lugar a forças migrantes outras, como a dos japoneses. Antifascista convicto, não sei se era republicano convicto (acusava a República de haver destruído um riquíssimo florescimento da imprensa, especialmente a acadêmica, de estudantes), mas é certo que via no jornal a grande força expressiva dos novos mundos democráticos da "terceira onda".
Embora tivesse elencado mais de uma centena de publicações em São Paulo, entre 1828 e 1888 -fenômeno extraordinário!- era melancólica a sua visão da imprensa paulista na virada da década de 20/30: "Não é preciso mais nada: o primeiro jornal pornográfico de São Paulo, sabem como se chamava? 'O Nu Piratiningano'? Não. 'S. Paulo em Camisinha de Meia'? Também não. 'O Gemido do Ipiranga'? Também não. Chamava-se 'O Pensador'. Formidável. E muitíssimo significativo". O leitor moderno pode ter um sorriso diferente em cada canto dos lábios, achando graça em ambos os lados...
Prosa. A sua teoria está exposta em "Cavaquinho e Saxofone", formação instrumental muito rara, quase improvável (na época), mas que metaforiza a falha geocultural entre dois mundos, ou a passagem para a terceira onda: nosso cavaquinho e o saxofone dos outros, diálogo sobrevivencial. O Brasil que se abre, dialoga e convive, não o Brasil fechado dos burocratas varguisto-nacionalisto-comunistas. Afinal, a expressão "homem cordial" é dele. A catadupa dos poetas românticos sufocou a prosa nas publicações: "Ninguém pode imaginar as bobagens incríveis que passavam por maravilhas e muitas vezes eram recitadas por duas e mais gerações. Só vendo". A prosa tinha de delinear o seu caráter face e frente à poesia retórico-discursiva -e a prosa jornalística, que falava dos "outros" e não do "eu" era o antídoto.
"Não é que eu ache que temos poetas de sobra. O que me parece é que temos prosadores de menos." A avalanche poética romântica só deixou restos e sobras para a prosa: "Passava fome a coitadinha".
É surpreendente, mais, é inovadora, a posição de Alcântara Machado, quando se sabe que a tradição moderna, do simbolismo para cá, não tem feito outra coisa senão buscar o "eidos", a virtude nuclear do signo poético, signo minoritário: "Não há dúvida que com a prosa a gente faz poesia. E é uma das vantagens da primeira sobre a segunda. Porque com poesia não se faz prosa. Agora, dar a esta um tom que é próprio daquela não me parece certo para quem ama a prosa pela prosa, para quem trabalha diretamente esse material, evitando toda e qualquer liga, isolando-se nele, não saindo dele. Lutando, enfim, para atingir a prosa pura como tantos se cansam atrás da poesia pura". Antecipa as excogitações de Sartre sobre o "eidos" da prosa, em "Que É Literatura?". A idéia de uma "prosa pura" dá o que pensar.
Sua teoria da prosa não resulta simplesmente de formulações idiossincráticas de um jornalista militante. Espanca nuvens e deixa entrever novos horizontes interrogativos: "E é aí que a porca torce o rabo desesperadamente. Creio mesmo que a superabundância de versos existentes no mercado se deve em grande parte à facilidade que a poesia oferece (tal como é geralmente compreendida) em comparação com a prosa. Esta é dura de se roer". Impressionante oxímoro, cegante avesso. Raras notações da teoria e da crítica literárias atingem o instigante patamar da seguinte afirmação: "A poesia vai evoluindo, vai abandonando certos gêneros, vai se simplificando. A prosa é a mesma imensidão desde que nasceu". Que a palavra "mesma" esteja espalhada dentro da palavra "imensidão" dá a medida do calibre poético do homem que defendeu a prosa pura.
No seu jeito simples, a formulação precisa: "A poesia (...) será a parte de Deus, como quer excelentemente Prudente de Morais Neto. (...) O poeta diz o que sente. E já é muito quando a gente sente com ele. O romancista diz o que sente, sim, mas sobretudo o que os outros sentem. (...) Na literatura brasileira de hoje a prosa tem se limitado a servir a poesia. Não se libertou desta, embora seja a mais forte. É verdade que só agora a poesia está, por sua vez, se libertando do discurso. É esse o grande inimigo".
O novo prosador é o repórter: "A vida que vive na luz é o repórter, o único a fixar. Fixar por um minuto. No jornal, ela continua e se transforma, nasce dia, morre dia, como sucede cá fora". Poucas vezes, o isomorfismo dia/vida/jornal foi tão bem expresso, pré-semioticamente.
Alcântara Machado visa a uma secundidade indicial pura através e com a palavra, uma quase-impossibilidade. Só se a palavra escrita fosse desaparecendo no papel à medida que por ela corressem os olhos. Como acontece na música, na dança, no teatro. Na vida. É o jornal como signo diagramático verbo-indicial (simbólico-indicial): "É o 'Manhattan Transfer', de John dos Passos. O assassino degola no número de 20 de abril. Chora arrependido no número 21. Depois desaparece. Surgem outros assassinos que também vão desaparecendo. Mas a 10 de maio volta o facínora de 20 de abril, assistindo de moral abatido ao sumário de culpa. Vai mudando de secção. No dia 16 de julho é condenado. No dia 8 de agosto se enforca no xadrez. E surge na primeira página, ao lado do rei da Dinamarca em excursão de prazer pelos lagos da Escócia". O resto é poesia.
Mestre e revelador sintético das expressões idiomáticas, esgrimando entre a palavra escrita e a palavra falada, ao lado do leitor, Alcântara Machado foge dos folclorismos urbanos e verbalizados, do pitoresco da vida na cidade, evitando o sentimentalismo. "Gaetaninho" é um clássico nesse sentido. Quando se espera uma solução mais ou menos prevista, de amargos e irônicos sinais trocados, tipo "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector (para não falar de inúmeros narratemas literários, teatrais, cinematográficos, telenovelescos), ele desincha o balão em anticlímax narrativo, antecipando o neo-realismo italiano à De Sica, em "Ladrões de Bicicletas". Corta e atalha a frase como quem corta eventos e sentimentos. "Short cuts". "Quick cuts". Pratica o fotoflagrante icônico-verbal. Misteriosa, enigmática é a indicação da cor vermelha em todos os contos e em detalhes quase inverossímeis.
Notável é que Alcântara Machado pratique na escrita a sua proposta de terceira onda, ao inventar um "portulismo" levado a sério, naturalmente a sério. Exemplos: "(...) namorado de máquina não dá certo mesmo", onde "máquina" significa automóvel ("Carmela"). Ou, no mesmo conto: "- Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?/ - Andismos" -o que logo nos traz à lembrança Adoniran Barbosa, um dos últimos espíritos ítalo-paulistas. Mas o melhor, como tradução de cognatos, corretamente anotado por Cecília de Lara, é o comentário do garoto sobre o atropelamento e morte de Gaetaninho: "- Amassou o bonde", onde "amassou" traduz "amazzare" (matar), com o sujeito da oração em mão dupla.
Outros italianismos, idiomaticamente mais sutis, entraram na circulação sanguínea da fala paulista: "- Vá saindo que pode vir gente conhecida"; "Também o grilo já havia apitado" ("Carmela"), em que "também" funciona como "pudera", "além disso". Traduzindo: "Além disso, o guarda civil já estava apitando". Alcântara Machado não arremeda a língua falada, mas a sedimenta em signo escrito, a ser resgatado pelo leitor segundo seu repertório oral. E quando é para fazer poesia: "Passavam cestas para a feira do largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa" ("O Monstro de Rodas").
Na pouca extensa fortuna crítica do livro, muito se fala de sua habilidade em captar lances da vida da gente simples, popular. Não é bem assim. O que aborda é o mundo de uma certa pequena burguesia ascendente, nem operário, nem lúmpen. Todos aspiram a um status superior. O Triângulo era o "ponto chic" da classe média paulistana, nos anos 20/30: não era a gente simples que passeava por lá. As garotas alcantarinas são semi-inocentes Carmens interesseiras (o nome Carmela caberia melhor no conto "Corinthians (2) vs. Palestra (1)", sendo esta a forma que a imprensa da época utilizava para registrar o placar do jogo).
A tendência iconizante da escrita de Alcântara Machado funda-se na diagramação e na tipografia da imprensa da época. A indicialidade do presente. A montagem metonímica da simultaneidade. O flagrante sígnico organizado segundo um paratatismo soberano pelo escritor-repórter. A vida dos outros. Só ao repórter o "outro" se confessa e confessa. Ao escritor, nunca. Esta idéia também faz parte de sua teoria da prosa.
Comprimindo o signo verbal na prensa da parataxe, compreendeu que era preciso expandir a tipografia para ter um livro. Pelos padrões vigentes, seu livro não chegaria a 50 páginas. Daí dizer que não se tratava de livro, sim de jornal (mas a obra caberia em oito páginas de um tablóide, se tanto).
Tentando converter o livro em jornal, e vice-versa, a consulta ao original é recomendada aos estudiosos e interessados mais chegados, tendo em vista a diagramação e a tipografia. E até a pontuação. Podem ser consultadas as edições fac-similares da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), com aportes documentais, comentários e glossário de Cecília de Lara.
Não sendo primitivo ou "naif", mas um homem moderno, sofisticado e informado (foi dos primeiros a olhar de mais perto a grande literatura que se estava criando no universo anglófono), gastou cerca de 35 mil palavras para compor sua obra-prima -uma pechincha. Desejou e pregou a necessidade de uma prosa em expansão. E foi atendido. Em enchentes prosaicas, que se despejavam na Guanabara. Vindas do sertão. Não eram euclidianas, mas acabaram por sê-lo. Marcaram uma época, a varguista. Engolfou todo mundo, incluindo Oswald e ele próprio (salvou-se Dyonélio, com "Os Ratos" -outro Machado!).
Durante três décadas, a literatura da idade urbana brasileira desapareceu do mapa. Não atingiu níveis de excelência (a não ser com o melhor Guimarães Rosa, mas já nos anos 50, quando se deu a retomada da "pesquisa alta" oswaldiana), mas representou o que os muralistas mexicanos representaram. Quando se deu o boom da literatura hispano-americana, o Brasil não tinha nada a oferecer na prosa, mas muito na poesia, experimental ou não -a poesia que, finalmente, trocara a quantidade pela qualidade. Fina ironia.
Grossa ironia, amarga como óleo de rícino, haveria de engolir nos dias que correm Antônio de Alcântara Machado. Frustraram-se as suas esperanças de uma "prosa pura" oriundas das fontes riquíssimas do jornalismo, que só produz a prosa chocha dos cronistas. Nos anos 60 os americanos conseguiram fazer alguma coisa de bom nível B (cf. "In Cold Blood", Truman Capote), com sua idéia de documentário-ficção. Nada fizemos, nós. Alguma "prosa pura" se fez no subsolo: Leminski, Valêncio, Haroldo, Décio, Raduan. Precisa-se de uma arqueologia de vanguarda.
Dizia dos numerosíssimos e horribilíssimos poetas românticos que eram "sabiás sem palmeiras". Aí é que está. Só vendo. Sujeito mais espeloteado.

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