São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Eros bem-comportado

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num belo poema intitulado "Homenagem Devida", Verlaine celebra o sexo feminino associando "a cona à lira", "em cujas pregas, cordas, a língua delira". Imagem notável, justamente por seu alto grau de ambiguidade, na medida em que remete tanto aos procedimentos da linguagem poética quanto às práticas sexuais que o órgão enseja. Seria, então, o delírio a dimensão privilegiada da língua ao tentar expressar o erotismo? Se não, de que outras formas nomear o sexo, quase sempre pensado na qualidade de inominável?
Essas questões podem orientar uma possível leitura do conjunto de poesias dedicadas à vulva, publicado no caderno Mais! em 20 de julho último. Na verdade, apesar de sua diversidade, os 15 poemas da edição não primam exatamente pelo "delírio da língua" de que nos fala Verlaine. Ao contrário, os versos dos poetas brasileiros contemporâneos tendem a representar o órgão sexual feminino por intermédio de metáforas um tanto castas, que compõem imagens de um erotismo bem comportado. Vejamos por quê.
Os versos de Verlaine fazem parte do livro "Poesia Erótica em Tradução", organizado e traduzido por José Paulo Paes. Sendo uma antologia, o volume apresenta uma variedade -tanto de formas poéticas quanto de tratamentos do tema- impossível de ser resumida numa só direção. Isso, porém, não impede que possamos reconhecer algumas linhas de força que norteiam a coletânea, como a perspectiva falocêntrica de grande parte dos poemas ou sua insistência em tematizar as fantasias preliminares do desejo, como sugere o organizador.
Entre as ênfases da poesia erótica selecionada por José Paulo Paes, destaca-se também -notadamente nos poetas modernos, mas não só neles- o que poderíamos chamar de "rebaixamento" da lírica. Ao invés de tratar a matéria sexual com metáforas elevadas, uma significativa parte dos autores prefere declinar a voz poética ao nível das partes baixas do corpo. Se tal procedimento se realiza de diversas formas -do emprego de palavras obscenas à invenção de termos burlescos, da opção pelo viés humorístico à criação de imagens hiperbólicas do desejo-, seu tema privilegiado tende a ser a encenação de fantasias sexuais.
Ora, é precisamente esse "rebaixamento" que parece estar ausente do conjunto poético publicado sob o título "A Lírica da Chama". Ausência que não passa despercebida aos próprios poetas, já que dois deles fazem dela o tema central de seus versos. "Por que a poesia tem que se confinar/ às paredes de dentro da vulva do poema?" -pergunta Waly Salomão em "Exterior". "Quantos textos um homem de letras/ precisa escrever para usar boceta?" -indaga Augusto Massi no seu "Poema em Forma de Carta", que coloca sob suspeita a "tara pela metáfora".
Se tais questões procedem no âmbito brasileiro, vale insistir que elas não são a baliza do erotismo poético ocidental, como sugerem os versos de "Poesia Erótica em Tradução". Na história particular da nossa poesia, Gregório de Matos e Silva Alvarenga representam exemplos quase solitários, ao lado das obras satíricas de um Bernardo Guimarães e do menos conhecido Laurindo José da Silva Rebello. Mesmo levando-se em consideração produções mais recentes -seja nas incursões episódicas de Drummond pelo campo da erótica, seja no erotismo místico de Hilda Hilst ou, ainda, no deboche da chamada "poesia marginal" de Glauco Mattoso, Roberto Piva e outros-, não há entre nós uma tradição de escrita de "poemas sexuais explícitos", para empregarmos o termo com que José Paulo Paes define o campo de seu livro.
Talvez essa seja uma das razões pela quais os poetas constatem, em sua indagações, a dificuldade de versejar sobre a vulva. Contudo, seria pernicioso ficar apenas indicando o que falta aos poemas publicados no Mais!, além do fato de que uma comparação com os grandes mestres da poesia erótica seria um tanto descabida. Mais vale, portanto, atentar para as metáforas privilegiadas nos versos da edição, para tentarmos perceber o campo de representações que elas recobrem.
Entre essas imagens, porém, há uma preferência unânime pelos sentidos nobres que a metáfora da flor exala: da "guirlanda" celebrada por Carlos Ávila às "pétalas" dedilhadas por Claudia Roquette-Pinto, da "crisália perfeita" desenhada por Angela de Campos até o cálido "botão de rosa", ao qual sucumbe a ironia inicial do poema de Nelson Ascher. Não é difícil reconhecer nesse conjunto uma tendência de elevação da lírica, que, sem dúvida, corresponde a uma forte idealização do sexo, como se ele só pudesse ser tematizado na sublimação de seus sentidos mais carnais ou até mais abjetos. Desnecessário lembrar que a flor representa um dos ideais humanos mais nobres e elevados, razão pela qual ela é imagem recorrente na poética clássica.
Não é de estranhar, portanto, que a maior parte dos poetas se recuse a empregar o vocabulário licencioso para falar da vulva: dos 15, só um o admite no título -"Boceta", de Arnaldo Antunes-, ao lado dos outros dois que aceitam versejar com palavras obscenas, sendo exatamente Waly Salomão e Augusto Massi que o fazem com a atenuante da interrogação. O restante opta por manter-se nas margens decentes dos "erotica verba", preferindo sempre a alusão em detrimento da nomeação.
É nessa chave também que podemos interrogar a insistência na metalinguagem, retornando ao tema do "rebaixamento" que a encenação de fantasias sexuais supõe. Nossos poetas parecem invariavelmente preferir falar "sobre" em vez de falar "de". Seja na linguagem minimalista de Lu Menezes, seja no excesso verborrágico de Roberto Piva, seja no viés feminino de Maria Rita Kehl, a metalinguagem é soberana. Nenhum dos poemas põe em cena o delírio de uma fantasia; nenhum deles se abandona aos excessos do imaginário que se associam com frequência à erótica literária.
Não cabe, nos limites deste artigo, uma indagação mais profunda sobre as razões pelas quais o erotismo explícito constitui um campo tão pouco explorado por nossos poetas e escritores em geral. Por certo, devem ser essas mesmas razões que concorrem para que as representações tímidas dos genitais femininos, no conjunto de poemas publicados no Mais!, estejam tão comprometidas com a castidade que os ideais elevados têm por pressuposto. Seria o caso de vasculharmos a história brasileira -bem mais marcada pelos valores cristãos do que normalmente admitimos-, para tentarmos explicar por que, em matéria de erotismo poético, o delírio da língua permanece para nós na condição de interdito.

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