São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Escândalos deixam de ser anedotas

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Até pouco tempo atrás as revelações sensacionais e deprimentes em torno da infinita corrupção, delinquência, inércia e capacidade de cometer excessos que caracterizam nossos governantes na América Latina costumavam restringir-se às colunas de humor ou às seções de curiosidades dos jornais. Recentemente, entretanto, os escândalos começam a ocupar uma paisagem mais séria, mais institucional e, sobretudo, mais arraigada na sociedade civil latino-americana. As denúncias que chocaram a opinião pública no Peru, México e Argentina recentemente parecem situar-se à margem dos ajustes de contas políticos que podem haver desempenhado papel preponderante no caso Collor. Talvez representem um primeiro passo em direção à construção de uma autêntica prestação de contas das autoridades.
Peru
O semanário peruano "Caretas" concluiu, após investigação de quatro anos, que a versão oficial segundo a qual o presidente Fujimori teria nascido em 1938 no Peru é duvidosa; e mais, que há razões para pensar que "El Chino" teria nascido no Japão, quatro anos antes. Ao examinar os registros dos navios, os arquivos de nascimentos, partos e das autoridades migratórias, a "Caretas" sugeriu a possibilidade Fujimori ter nascido no povoado japonês de Kawachi, em 1934, e viajado com seu pai, sua mãe e sua irmã para o Peru naquele ano.
Os registros do serviço de imigração peruana mostram que em 1934 aportou em Callao o navio Fujio, procedente de Yokohama, transportando quatro membros de uma mesma família, cujos sobrenomes estão rasurados. Mas a última letra do primeiro sobrenome é "i" (os outros três apresentam apenas aspas), e o quarto nome termina com "o" (Alberto, em japonês, é Kenyo).
A mãe de Fujimori, a sra. Matsue, se registrou junto às autoridades migratórias peruanas como mãe com dois filhos menores de dez anos, embora a ficha tenha desaparecido do registro. Como Fujimori só tem uma irmã, supõe-se que a outra criança inscrita seja ele. A revista revelou a existência de outros documentos de identidade ou registro civil rasurados, apagados ou riscados.
Fujimori disse que estudou seis anos numa escola japonesa em Lima. Entretanto, todas as escolas japonesas foram fechadas em 1942, devido à 2ª Guerra Mundial. Se Fujimori estudou seis anos numa dessas escolas, deve ter ingressado nela em 1936, e, nesse caso, não poderia haver chegado ao Peru em 1938. Assim, tudo indica que o atual presidente peruano na realidade nasceu na terra de seus ancestrais e que, portanto, está constitucionalmente impedido de exercer o cargo que ocupa.
Fujimori rechaçou todas essas imputações e concordou, embora sem entusiasmo, em submeter-se a uma investigação independente. Seja como for, o fato de um semanário independente e ousado haver se atrevido a questionar um presidente autoritário como o "Chino", levando-o quase a se aproximar da renúncia, representa uma grande novidade salutar na América Latina.
México
Um escândalo análogo, mas talvez menos espetacular, vem abalando a opinião pública mexicana há algumas semanas, especialmente desde que a revista "Proceso" divulgou uma série de documentos secretos das Forças Armadas sobre seus vínculos com o narcotráfico e sobre a insurreição zapatista em Chiapas. Apenas alguns dias após o levante indígena de 1º de janeiro de 1994, começou a se difundir a suspeita de que o então presidente, Carlos Salinas de Gortari, teria tido conhecimento da existência de grupos armados em Chiapas. Apesar disso, preferiu não atacá-los ou destruí-los por temer que eventuais informes sobre soldados mexicanos massacrando e torturando camponeses maias impossibilitassem a ratificação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) pelo Congresso dos EUA.
Essas suspeitas só puderam ser confirmadas em julho deste ano, quando foram publicadas na imprensa mexicana várias entrevistas citando militares de alto escalão, segundo os quais Salinas sabia de antemão da presença de guerrilhas no Estado de Chiapas. Mas os fatos trazidos à tona pela "Proceso" foram muito mais contundentes: um dos documentos publicados afirmava especificamente que nos dias 9 de junho e 12 de agosto de 1993 foram realizadas reuniões entre o presidente e o alto comando militar, nas quais o primeiro foi informado da origem, magnitude, localização e importância da ameaça armada em Chiapas. O escândalo no México foi menor do que no Peru, em parte porque a opinião pública mexicana já se acostumou com as diversas evidências de conduta escandalosa de Carlos Salinas e em parte porque os documentos apenas confirmam o que muitos já acreditavam ser fato. Mas as revelações geraram mal-estar nas Forças Armadas e atiçaram a fogueira anti-salinista. Qual havia sido, afinal, o custo exato do Nafta, e o que tanto Salinas havia cedido para garantir a aprovação do tratado por Washington?
Argentina
Por último, a campanha eleitoral em curso em Buenos Aires sofreu o efeito das tentativas cada vez mais bem-sucedidas da ex-mulher do presidente Carlos Menem, Zulema Yoma, de demonstrar que seu filho, Carlos Menem Jr., morto num acidente de seu próprio helicóptero, em 15 de março de 1995, teria sido, na realidade, vítima de um atentado, não de um acidente. A ex-primeira-dama argentina exigiu a reabertura das investigações, depois de a polícia argentina anunciar que o helicóptero apresentava vários furos de balas, feitos de fora para dentro, que possivelmente explicassem a queda do aparelho.
Os tribunais argentinos e o governo procuraram abafar o relatório da polícia e se negaram a lançar uma nova investigação; Zulema Yoma acusou seu ex-marido e pai do jovem morto de encobrir o assassinato para proteger seu governo de mais revelações destrutivas de corrupção, narcotráfico e terrorismo de Estado. Mais uma vez, apesar de o desenlace da telenovela permanecer incerto, as acusações dirigidas ao chefe de Estado argentino fortaleceram a impressão generalizada de podridão no governo de Menem. É possível que venham a contribuir parcialmente para a derrota de seu partido nas próximas eleições; desse modo, Menem se transformaria num virtual dirigente em final de mandato, a quase dois anos do término do mesmo.
É evidente que escândalos como esses vêm dificultando a governabilidade latino-americana. Ademais, nem sempre correspondem a assuntos fundamentais. Como observou Mario Vargas Llosa, não é evidente que seja tão importante assim se Fujimori chegou a Lima com apenas meses de idade ou se nasceu na cidade, quatro anos mais tarde. Mas, segundo o escritor, o essencial é que ele cresceu, estudou e criou raízes no Peru, embora a mentira e a violação da lei por Fujimori não sejam temas secundários. Do mesmo modo, talvez Salinas tenha tido razão em esperar que os zapatistas disparassem primeiro, em lugar de correr o risco de atacá-los antes. Mas, mesmo admitindo tudo isso, os outros habitantes desses países devem ser informados desses fatos para poder julgá-los e exigir que seus governantes prestem contas deles. É isso que é novo na América Latina: o surgimento paulatino do conceito intraduzível e tipicamente anglo-saxão de "accountability". Já não era sem tempo!

Tradução de Clara Allain

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