São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
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Falácias da igualdade

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. É objetivo nacional brasileiro reduzir as desigualdades regionais. A igualdade entre trabalhadores, com e sem relação de emprego, é assegurada.
As três frases acima foram colhidas e adaptadas da Constituição Federal. Todas, dependendo do modo pela qual sejam interpretadas, envolvem falácias, um termo de pouco uso, que define fatos ou atos ilusórios, que não merecem fé, enganosos, porque a igualdade referida no texto constitucional e nas leis vigentes é relativa, até pela simples constatação de ser logicamente impossível romper os desequilíbrios sociais e legais.
Cabe uma advertência: quando, levados pelo nosso terceiro-mundismo, cogitarmos de só o Brasil tem desigualdades sociais, pensemos na Suécia. País modelar em riqueza, civilização e progresso, manteve, todavia, até os anos 70, um programa de erradicação dos menos favorecidos. Em sistema próximo do arianismo hitlerista, vedou que indigentes e ciganos tivessem filhos. A desigualdade de tratamento destinou-se a eliminar os mais fracos. Os defeitos alheios não nos consolam, mas diminuem nossos complexos. Aliás, Anatole France, escritor francês que morreu na primeira metade deste século, zombou da igualdade jurídica ao dizer que a lei, em sua imperial indiferença, assegura, tanto ao rico quanto ao pobre, o direito de dormir debaixo das pontes e de furtar para conseguir o pão que lhes mate a fome.
Há, porém, aspectos nos quais as qualidades da igualdade legal se mostram com mais clareza. Assim, todo cidadão brasileiro é obrigado a prestar o serviço militar, salvo se for dispensado; é obrigado a votar nas eleições políticas. Todo trabalhador, homem, mulher, de qualquer raça ou religião, tem o direito de se sindicalizar. Esses aspectos mostram a geração imparcial de direitos e obrigações, abertos a todos os indivíduos da mesma espécie, ainda que apartados por certas diferenças. É o caso de sexo e religião, no serviço militar (a mulher e o sacerdote não são obrigados ao alistamento), de alfabetização e idade, no voto (o analfabeto e o menor entre 16 e 18 anos votam voluntariamente). São diferenças confirmadoras da imparcialidade. Tratam desigualmente dos desiguais. Compensam desequilíbrios decorrentes de fatos da natureza ou culturais e econômicas, mas não superam a convicção comum da predominância da desigualdade, a dano dos menos dotados. Desconheço pesquisa sobre a posição afirmada por Anatole France, mas creio que a maioria do povo pensa como ele. Ou, ainda, como Balzac, inspirado em Rabelais, quando comparou as leis a teias de aranha, nas quais só ficam presas as moscas pequenas, pois as grandes passam livres.
Se insistirmos no uso constitucional da palavra igualdade -como referi no primeiro parágrafo- em sentido absoluto, estaremos enterrando a cabeça na areia para não vermos a verdade. Imitaremos o avestruz. Os requisitos da igualdade possível (e, portanto, relativa) compreendem, em primeiro lugar, o respeito a valores éticos, desde pequenos atos da vida diária até o tratamento garantido na lei, implementado por equipamentos do Estado. Nesse plano, predomina e deve sustentar-se o Poder Judiciário. Quando dá resposta breve aos pedidos submetidos a seus órgãos, para o solucionamento das controvérsias, viabiliza a igualdade, embora se saiba que depende da firmeza de convicções da própria cidadania. No turbilhão transformador em que as últimas gerações viveram, a união do Estado e da sociedade na tarefa ética (mais do que legal) de preservar a igualdade dos desiguais é pressuposto urgentíssimo. Transcende dos legalismos.

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