São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
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Uma espécie ameaçada?

RUBENS RICUPERO

Não me refiro à ararinha-azul do sertão, ao mico-leão-dourado, ao monocarvoeiro ou a outras espécies em extinção de nossa já quase desaparecida Mata Atlântica.
A pergunta do título alude a outra espécie, a classe média, que, entre nós, assim como em todo o mundo está encolhendo de tamanho, pressionada, no alto e em baixo, pela crescente polarização entre ricos e pobres.
O fenômeno é examinado pela organização onde trabalho, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), no relatório recém-publicado a respeito de globalização, desigualdade e crescimento.
Como se sabe, a maneira mais comum de descrever as diferenças na distribuição de renda entre os países é verificar qual é a porcentagem da renda total recebida pelos 20% mais ricos, os 40% intermediários (a classe média) e os 40% mais pobres da população.
Nas sociedades menos desiguais, os mais aquinhoados recebem 40% da renda, a classe média outros 40% e a camada inferior os restantes 20%. Em quase todos os países desenvolvidos, o padrão é essa distribuição 40-40-20.
No extremo oposto estão os países onde os 20% mais ricos se apoderam de 60% da renda, a classe média de 30% e os 40% de pobres ficam com apenas 10%. Não creio surpreender os leitores com a revelação de que o exame de 92 países feito pela Unctad, com base em dados até antes do Real, encontrava o Brasil ainda na desonrosa liderança desse grupo. Os menos desiguais são a Bélgica, o Canadá, a Finlândia e a Eslováquia.
Uma conclusão inquietante do estudo é que, nos últimos 15 anos, surge uma tendência quase universal para o rápido aumento da porcentagem de renda dos ricos, associada quase invariavelmente a uma queda na renda da classe média.
Parece delinear-se assim uma reversão da tendência prevalecente em muitos países antes dos anos 80, no sentido de uma elevação dos ganhos dos setores intermediários, em detrimento da parcela detida pelos ricos.
Na América Latina, por exemplo, a crise da dívida e suas sequelas primeiro frearam e depois inverteram bruscamente o lento movimento de expansão da classe média e de superação gradual da desigualdade, ao menos em seus aspectos mais chocantes. O pior, contudo, é que a aparente "solução" do problema da dívida não foi capaz de recuperar o terreno perdido e de permitir retomar a tendência existente antes da deterioração.
Em toda a parte, a causa geral do fenômeno é a mesma. À medida que o pêndulo da economia se moveu em direção a um mercado cada vez mais livre da interferência de leis e decisões governamentais, a parcela do capital na renda total passou a aumentar, enquanto decrescia a do trabalho.
Um fator agravante nesse sentido é a existência de um considerável excedente de mão-de-obra em relação aos empregos disponíveis. Em países de maior flexibilidade no mercado de trabalho (Inglaterra, EUA), isso provoca a estagnação dos salários inferiores e a geração de empregos em geral de remuneração mais baixa, às vezes em tempo parcial e, com frequência, no setor de serviços. Em outros, menos maleáveis (França, Alemanha), o desemprego explode e se mantém em níveis elevados, mesmo quando a economia volta a crescer após as recessões conjunturais.
Na América Latina e no Brasil, há, além disso, um outro elemento para piorar o quadro. A crise econômica e financeira fragilizou o governo, que era quase o único grande empregador, sobretudo em áreas mais subdesenvolvidas. Assim, de um lado, estão se fechando as oportunidades de empregos nas administrações e empresas estatais em via de privatização. Ao mesmo tempo, os que ficam já não mais conseguem reajustes salariais e assistem, impotentes, a uma queda inevitável de padrão e "status".
É o que se vê, por exemplo, na deterioração constante, já desde mais de uma década, da situação de grandes bastiões tradicionais das classes médias e das profissões liberais como a magistratura, o Ministério Público, as universidades, os setores públicos de educação e saúde em geral, os militares etc.
Seria menos mau se, paralelamente, estivessem sendo criadas oportunidades comparáveis num setor privado dinâmico e em expansão. Infelizmente, a economia, em busca de produtividade, começa a imitar o comportamento de suas congêneres de países avançados. Mesmo quando cresce, gera pouco emprego.
A transição de uma economia dominada pelo Estado para outra mais produtiva, de mercado livre e liderada pelo setor privado, tem de passar provavelmente por uma fase de "destruição criativa". O problema é que está havendo muita destruição e pouca criação. A raiz disso é que os enormes ganhos do capital não estão gerando reinvestimento no setor real da produção como seria necessário.
As oportunidades com a especulação financeira, na fase inflacionária com o "overnight", hoje com os elevados juros da dívida pública, são muito mais atrativas do que os investimentos de risco, que criam empregos, exportações, bem-estar. O Brasil antes produzia empresários de visão, industriais arrojados. Hoje só produz magos do mercado financeiro, gente que se enriquece em pouco tempo na base de castelos de papel, sem correspondência muitas vezes na vida real. Até o "Economist" lamentava que os melhores cérebros brasileiros eram todos recrutados pelo mercado financeiro, em lugar de ajudar a criar riqueza nova.
Em épocas normais, a legitimação do lucro e da desigualdade provém do seu papel social de gerar recursos para o investimento criador de emprego. Quando se rompe esse nexo e a riqueza começa a ser vista como socialmente perniciosa, os problemas se complicam.
Isso é particularmente verdade no momento em que se assiste ao esvaziamento e empobrecimento das classes médias cuja ativa participação na vida cultural e política da sociedade é a condição básica da estabilidade democrática.
Por essa razão, como diz a Unctad, não só o Brasil e a América Latina, mas o mundo necessitam de um novo contrato social por meio do qual os lucros crescentes e a desigualdade inicial sejam justificados por investimentos capazes de produzir o aumento da renda e dos padrões de vida da massa da população.

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