São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 1997
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A ONU, o Mercosul e o tango

LUIZ AUGUSTO P. SOUTO MAIOR

A 52ª Assembléia Geral da ONU leva-me a abordar -agora de uma perspectiva mais ampla- tema já aflorado em artigo anterior. Não se trata aqui da divergência brasileiro-argentina em torno da composição do Conselho de Segurança, em si mesma relativamente limitada, mas de algo muito mais abrangente: a dimensão de política internacional do Mercosul.
O estabelecimento de um mercado comum implica um entrosamento tão amplo e profundo das sociedades que o integram que tratá-lo como mero projeto econômico seria flagrantemente irrealista e significaria, possivelmente, levá-lo ao fracasso. É, pois, imperativo que ele seja percebido pelos Estados que o integram como parte de uma grande visão conjunta de política internacional.
Assim, cabe hoje à opinião pública informada dos países signatários do Tratado de Assunção perguntar em que medida seus governos -especialmente os do Brasil e da Argentina, cujo engajamento é indispensável ao êxito do empreendimento- têm tal percepção e estão dispostos a fazer dela condicionante maior de suas respectivas políticas internacionais.
Todos se lembram da declaração do presidente argentino de que a escolha do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU "romperia o equilíbrio hoje existente na região". Quase ao mesmo tempo, os Estados Unidos tornaram pública sua intenção de atribuir à Argentina o "status" de aliado estratégico extra-Otan.
Nenhum dos dois fatos, tomado isoladamente, chega a ser alarmante. Grave, entretanto, é que eles confirmam a descoordenação entre Buenos Aires e Brasília em matéria de política internacional -situação pouco aceitável entre dois países comprometidos com a construção de um mercado comum e que se dizem unidos por uma aliança estratégica.
A determinação anunciada pelos dois governos de que suas divergências sobre a composição do Conselho de Segurança não interferirão no progresso do Mercosul pode ter aliviado os empresários dos dois países, mas apenas confirma o problema: as questões da ONU são de política internacional e devem ser tratadas naquele foro, enquanto a integração é assunto "regional", essencialmente "econômico", devendo ser preservado da desarmonia que, aparentemente, ambos concordariam manter no âmbito "político mundial".
A importância econômica do Mercosul para os dois países é indiscutível. O que surpreende e inquieta é a aparente insensibilidade -sobretudo, curiosamente, do lado de Buenos Aires- para a dimensão de política internacional que ele deveria ter, sem a qual suas potencialidades dificilmente chegarão a realizar-se plenamente.
O governo Menem adotou, como orientação geral de política externa, o chamado "pragmatismo periférico", alinhando sua política à de Washington. No âmbito mundial, os exemplos são notórios. Mais relevante, porém, é que Menem tem deixado claro ser mais permeável do que o Brasil às idéias americanas sobre a Alca, o que de alguma forma debilita a posição negociadora externa do Mercosul, enquanto, segundo se comenta, estaria usando suas "relações carnais" para resolver problemas de seu contencioso comercial com Washington. É um direito seu, mas reabre questões que Brasília teria o direito de considerar como já cabalmente resolvidas.
Para quem vê na aproximação brasileiro-argentina um dos desenvolvimentos mais auspiciosos da nossa política internacional recente, tal situação é lamentável. E particularmente irônica, porque parece um erro mesmo do ponto de vista dos interesses argentinos.
Comercialmente, o Mercosul é importante e tem sido benéfico para ambos os países, porém ainda mais para a Argentina. Os agregados macroeconômicos e a balança comercial bilateral o demonstram. Isso se deve em parte à atitude brasileira de negociar com os argentinos dentro do enfoque global de um amplo interesse político-econômico.
Reduzir o Mercosul à sua expressão estritamente econômica é, pois, a médio e longo prazos, dar a Brasília um poder de barganha que, como brasileiro e amigo da Argentina, espera-se não tenha de ser usado. Mas, como dizem os aliados estratégicos de Buenos Aires, "it takes two to tango..."

Luiz A. P. Souto Maior, 69, é embaixador aposentado do Ministério das Relações Exteriores. Foi embaixador do Brasil junto às Comunidades Européias (1977-84), no Peru (1984-87) e na Suécia (1987-90).

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