São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 1997
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O poder e o saber

GERARDO MELLO MOURÃO

Nas últimas semanas, o país foi questionado por dois interlocutores fora de série sobre seus compromissos com a chamada "política cultural", expressão temerária que se vulgarizou desde a criação de um Ministério da Cultura.
Pois as relações do poder político com o saber, isto é, com a cultura propriamente dita são sempre difíceis e às vezes desastrosas, como as "liaisons dangereuses" que dão título ao romance famoso de Choderlos de Laclos.
Essas ligações perigosas afetam os desavisados círculos intelectuais do Rio e de São Paulo, expostos ao contágio dos cretinos fosforescentes, franceses, americanos, do norte e do sul, os Alain Touraines da vida, que deslumbram, de tempos em tempos, as platéias marxóides da tolice nacional.
O livro mais recente de Robert Hughes, "American Visions -The Epic History of Art in America", é um desses questionamentos aos conceitos de arte e de cultura em que patinamos.
O outro foi a visita de Marc Fumaroli para a "aula magna" que pronunciou em São Paulo e no Rio. O marketing da ligeira cultura de segundo caderno dos jornais, com o apreço provinciano pelas pompas sociais, identificou o mestre Fumaroli não por sua obra seminal, mas como membro da Academia Francesa e do Collège de France.
O primeiro título não tem grande importância nem é levado muito a sério no círculo melhor da inteligência francesa. Mas o segundo supõe, desde logo, um alto conceito nas esferas mais altas do saber e da cultura. Os franceses nunca precisaram de um Ministério da Cultura, embora tenham oferecido o único titular capacitado para a missão neste século em toda a Europa, o escritor André Malraux. Depois dele, a estupidez política impingiu à França a presença desrespeitosa das medíocres aventuras pirotécnicas de um rapaz inculto e barulhento, o pitoresco senhor Jack Lang. Mas isso é outra história.
O certo é que a França continua a ter em Paris uma espécie de capela-mor das letras e do humanismo do saber do Ocidente, em que pese a superioridade da filosofia alemã, que concentrou, depois dos gregos, a frota maior dos que abriram rotas novas à navegação do pensamento.
A França não precisa de um Ministério da Cultura. A cultura ali resiste e sobrevive até às tolices e imposturas de ministérios e academias. Bastam-lhe presenças como o centro de estudos egrégios do Collège de France, no qual uns poucos são chamados ao trabalho de pensar o pensamento ou, se quiserem, a sabedoria, que é a maior herança do homem, fonte por fonte, caminho por caminho.
A política não estará ainda instrumentada no Brasil para ousar um colégio desse tipo. Na França, como na Europa em geral, seus protagonistas têm uma luxuosa tradição de compromissos com a cultura.
É oportuno lembrar que dirigentes do país, à esquerda e à direita, foram, ainda neste século, figuras inseridas na vida das letras. Laval lia e traduzia poetas gregos, Pompidou era autor de uma antologia da poesia surrealista, Giscard frequentava os clássicos e Mitterrand escrevia um francês de Racine. Não há outro país no mundo -diz Fumaroli- em que o escritor, o crítico e a literatura continuem a desfrutar de tanto prestígio. O próprio presidente, com maior ou menor sucesso, se esforça sempre por ser ele mesmo um escritor.
Um dos livros fundamentais do mestre do Collège de France, "O Poeta e o Rei", ao tratar das relações de La Fontaine com Luís 14, oferece um modelo vivo de diálogo entre o saber e o poder -diálogo que a civilização européia habituou-se a conhecer por meio de exemplos históricos fulgurantes, como a correspondência famosa de Felipe 2º com o arquiteto do Escorial ou os pensamentos políticos de Coleridge.
A literatura é a consciência crítica da cultura. Mas, depois que a ignorância institucionalizada pelas ideologias corrompeu cúpulas e arrabaldes do poder político e se alastrou pelos porões do ensino universitário, criou-se um conceito sociológico de cultura, depravado e inepto, em que o saber foi substituído pela tautologia balbuciante das manifestações toscas, vestibulares ou massificadas da expressão. Elas têm seu valor e seu lugar. Mas é preciso deixar claro que a música de Chitãozinho e Xororó está tão distante da de Bach como a dança do Tiririca da de Diaghilev.
A lição que Fumaroli trouxe é sobretudo essa: a linguagem literária é a antiideologia. A ideologia é uma estrutura dogmática pétrea e sáfara, na qual não pode medrar nenhuma idéia. A linguagem literária é incompatível com o dogmatismo, que sufoca e esteriliza o pensamento. A democracia não pode coexistir com sistemas ideológicos, pois precisa da crítica livre para sobreviver. E a crítica é a coisa da literatura.
O autor de "O Poeta e o Rei" lembra o caso da França. Mesmo nos piores momentos, quando a sociedade do pós-guerra foi tentada pelo comunismo ou por uma forma autoritária de gaullismo, a literatura foi a presença lúdica e inquieta que impediu a solidificação do cimento das casamatas da ditadura e assegurou o ar aos pulmões da liberdade, da democracia política.
Parece que o presidente Fernando Henrique entendeu isso ao repelir as ineptas observações do jargão marxóide do sr. Alain Touraine sobre as perspectivas do Brasil. Esse jargão, que ainda contamina as relações do poder com o saber, é pior que o próprio jargão marxista de que é originário, porque incorpora uma linguagem requentada e ressentida.

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