São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 1997
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Os juízes e o princípio da igualdade

ODYR PORTO

A função judicial exige magistrados isentos, acima de qualquer suspeita por sua conduta pessoal e profissional, voltados para o estudo, impedidos de exercer outra atividade, sem maiores preocupações materiais, distantes do mundanismo do comum dos homens, capazes de resistir aos poderosos e à sedução das manchetes, imunes às paixões políticas; reclama, enfim, homens extremamente vocacionados, o que, convenhamos, não é fácil encontrar em nossos dias.
Daí enfrentar a magistratura um permanente desfalque em seus quadros e a impossibilidade prática de aumentar, como necessário, o número de juízes. Cuida-se, sem dúvida, de uma instituição diferenciada, até porque a sociedade democrática não prescinde de juízes assim qualificados.
Sei disso: fui um deles. Percorri, por quase 40 anos, os vários degraus dessa carreira, submetendo-me e sofrendo as implicações de tantas exigências e restrições, desde o cargo de juiz substituto, conquistado em concurso público, até a presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, convivendo intimamente com os magistrados como presidente das associações paulista e brasileira.
Ainda por esse motivo dou meu depoimento espontâneo. Não podem aqueles que não conhecem as particularidades dessa instituição medir adequadamente a dimensão desse verdadeiro múnus público!
Pois bem. Agora, quando se redefinem as regras da Previdência, essas peculiaridades são indesculpavelmente deslembradas. O juiz passa a ser, nessa projetada perspectiva, um funcionário público igual aos demais servidores, numa equivocada homenagem ao dogma constitucional da igualdade.
Mas que igualdade é essa, elevada a status constitucional? Seria uma paridade aritmética, ditando tratamento igual para situações desiguais, simplesmente ignoradas? Ou uma paridade realista, recomendando que nesse regramento tais distinções sejam consideradas?
O direito não se omite nessa discussão. Lembro-me, com a observação de que a esse respeito existem inúmeras obras do mesmo valor, da monografia de concurso do professor Anacleto de Oliveira Faria, com admirável síntese das correntes de pensamento que se formaram em torno da questão.
Ressalvada a necessária igualdade de origem e dos direitos fundamentais da pessoa, impor no mais, radicalmente, a igualdade, sem ponderar as diversidades que existem no interesse da própria sociedade, "constituiria autêntica iniquidade". É, aliás, de Ruy Barbosa a lição de que "tratar com desigualdade a iguais ou a desiguais com igualdade seria desigualdade flagrante".
Nem foi com outro significado que a nossa Constituição, consagrando esse princípio (art. 5º), no mesmo texto editou normas diferenciadas, como as relativas às aposentadorias de professores (art. 202, 3º), membros do Ministério Público (art. 130) e magistrados (art. 93, 6º). Tais preceitos, geral e especiais, convivem harmoniosamente, compondo uma igualdade real. Desvirtuar o sistema seria um despropósito.
Está tramitando no Congresso o projeto de uma nova Lei de Imprensa. O homem comum está sujeito até a penas privativas de liberdade pela prática de crimes contra a honra. Ao jornalista, porém, cuja liberdade de informação há de ser preservada, no que estamos todos de acordo, essas sanções mais graves serão substituídas por outras.
Ao presidente da República, aos governadores, senadores, deputados e até aos prefeitos a Constituição reserva juiz especial para o julgamento dos eventuais crimes por eles cometidos, diverso dos destinados ao cidadão comum.
Nessas cogitações haveria afronta à paridade constitucional? Certamente não, porque se estão tratando desigualmente situações desiguais e se respeitam peculiaridades fundadas não no interesse de alguns ou de um segmento social, mas na "utilidade comum", como escrito na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
O raciocínio, lógico, é pertinente também aos magistrados.
A opção que se coloca é clara. Ou continuamos com juízes diferenciados, tratando-os diferentemente, ou vamos nos satisfazer com juízes sem as prerrogativas e qualidades indispensáveis à realização da justiça que tanto almejamos e que um dia ainda teremos.

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