São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997
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Uma história de ideologia

JOSÉ SARNEY

Alexandrino Rocha, um dos mais brilhantes jornalistas do Nordeste, era o secretário de Imprensa do governador Miguel Arraes na Revolução de 64. Foi preso e encontrou-se, no salão dos interrogatórios, com um tipo popular no Recife, que andava com um capote pesado, absolutamente inadequado para o clima da região, barba grande, entre profeta e andarilho, que acompanhava todos os movimentos da esquerda pernambucana e gostava, para gozação da cidade, de dar conselhos ao governador.
Deram-lhe o apelido de Malenkov, o efêmero sucessor de Stálin. Certa vez, encontrou o dr. Arraes num comício, aproximou-se dele e denunciou:
"Dr. Arraes, isso não é possível, o delegado de polícia de Caruaru não sabe nada de marxismo. É preciso zelar pela doutrina".
Alexandrino cruza com Malenkov na prisão. O inquisidor, um capitão revolucionário, ao olhá-lo, foi direto: "Seu comunista miserável, enfim o pegamos!". O Malenkov olhou de lado, sacudiu a cabeça e retrucou: "Capitão, não venha me furar. Eu sou kardecista, da linha 2, porque tinha dois Allan Kardecs. Comunista, jamais! Sou espiritualista".
Alexandrino Rocha quis rir e o capitão, ríspido, cortou: "Você é outro, dos piores".
Agora, leio que o nosso querido e legendário Arraes cobrou uma linha ideológica do Ciro Gomes, a mesma firmeza que o Malenkov dizia que ele não tinha com o delegado de Caruaru. Não é socialista, não pode entrar no PSB! A lei determina que o filiado concorde com o programa do partido.
Se a moda pega, vamos ter um interrogatório como aquele que testemunhou o Alexandrino Rocha. Basta usar a mesma fórmula nas filiações partidárias. No PFL, o ritual deve ser: "És neoliberal?" No PSDB: "És social-democrata? De que ala? Covas, FHC ou governista?" No PMDB: "És de centro esquerda, direita ou centro centro?" E no PT: "És socialista? Marxista-leninista? Articulação? Trotskista? CUT ou MST?" E no Prona?: "És pronista?" E assim por diante.
O diabo é a dificuldade de saber nos tempos atuais o que é o socialismo. As ideologias estão num caldeirão de mudanças e transformações, para desaparecerem pelo fogo. Jean François Revel escreveu um livro sobre o conceito moderno de socialismo. Diz ele que agora tantas são as nuances, as vestimentas, os disfarces, que socialista é apenas aquele que se preocupa com o social.
Bobbio, por outro lado, depois de estudar tanto as doutrinas políticas, afirma que não existe social-democracia. Thomas Morus, quando escreveu o seu famoso livro "Utopia", descrevendo uma sociedade imaginária, sem Estado, com produção coletiva, felicidade de todos sem a exploração do homem pelo homem, foi o primeiro socialista e diz-se que foi o influenciador de todo o modelo ideal do comunismo.
Com a tradição brasileira de partidos não-ideológicos e regionais vai ser difícil reimplantar a rigidez de conceitos e dogmas programáticos. A situação partidária do Brasil está exatamente como dizia o meu histórico adversário Vitorino Freire: "Hora de vaca não conhecer bezerro".

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