São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997
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O estado da saúde no Brasil

DAVID UIP

A saúde do Brasil encontra-se hoje num estado pior do que a saúde do brasileiro, vítima da insensibilidade crônica dos responsáveis por liberar verbas, alocar recursos e toda a burocracia fazendária que sufoca este país.
Em que pesem as expressivas conquistas econômicas -estabilidade que teria permitido às autoridades um planejamento mais coerente das políticas de saúde-, assistimos perplexos ao retorno de doenças que há muito tinham deixado o dia-a-dia dos brasileiros.
Pouco se investe em prevenção, e as consequências não se fazem esperar: a recente epidemia de sarampo, que atingiu inclusive adultos, mostra claramente o preço pago pela economia irresponsável que corta recursos destinados à vacinação para despendê-los, muitas vezes maiores, no tratamento e na internação de pacientes que poderiam ter sido poupados desses males.
Mesmo a instituição de um novo tributo, fruto de uma vitória pessoal do então ministro Adib Jatene, não foi capaz de minorar esses problemas. A própria população brasileira compreendeu a necessidade da nova taxa, que, embora antipática, surgiu como um sinal de esperança para uma área fundamental para o desenvolvimento deste país.
O que vemos, no entanto, é que esse adicional -a previsão de arrecadação com a CPMF para 1998 é de aproximadamente R$ 7 bilhões- corre o risco de se tornar a parte expressiva dos recursos para a saúde em vez de uma injeção a mais, o que, aliás, era a sua proposta primeira.
Desse modo, iniciamos o último quadrimestre do ano com as piores perspectivas possíveis: cortes orçamentários que podem representar uma redução de mais de 60% nos recursos anteriormente previstos para o próximo ano e que, sem dúvida, se refletirão em todas as áreas de abrangência da saúde, em especial aquelas que necessitam de medicação e acompanhamento clínico especializados e constantes.
É, por exemplo, o caso da Aids, que poderá ter todo o seu complexo de ações comprometido, das campanhas de prevenção e esclarecimento até o tratamento e a internação, de nada adiantando contra isso a lei que garante ao paciente de Aids acesso público e gratuito à terapêutica necessária.
A situação é ainda mais séria quando constatamos que, em caso de interrupção de tratamento ou modificação da droga usada em função da disponibilidade de estoques, o paciente corre o risco de desenvolver resistência precoce a fármacos atualmente disponíveis.
É o que pode vir a acontecer com os inibidores de protease que compõem parte do "coquetel", caso as autoridades responsáveis pela liberação de recursos não tomem imediatas providências para garantir o abastecimento da rede pública. Mesmo hoje, em certas cidades, esse abastecimento já se encontra em níveis de alto risco, às vezes dependendo de remanejamento e transferências de medicamento de outras localidades.
Na verdade, o problema se compõe da irresponsabilidade aliada à insensibilidade. Se os burocratas de plantão não se incomodam com detalhes como qualidade de vida e sobrevivência de uma parcela da população brasileira -que pode prosseguir economicamente ativa se receber tratamento adequado-, deveriam pelo menos se ater à área que dizem dominar: os números.
Pelo menos dois estudos recentemente divulgados, um canadense e outro francês, demonstram que o investimento realizado no tratamento ambulatorial dos pacientes com Aids reduz em muitas vezes os gastos necessários com tratamentos hospitalares.
Não estamos buscando soluções que possam até ser tecnicamente adequadas sob o ponto de vista econômico. Estamos buscando soluções que tragam alívio, esperança e sobrevida a pessoas. Gente, não números. Seres humanos, não índices.
Todos temos nossa parcela de responsabilidade nessa batalha. Nós, profissionais de saúde, as autoridades e mesmo os pacientes, isoladamente ou por intermédio de associações que os representem. Cada representante da sociedade pode e deve interferir na determinação dos orçamentos atuais e futuros. Bastam vontade e tempo. Vontade todos temos de sobra. O tempo, porém, está se esgotando -muito mais rapidamente do que imaginamos.

David Everson Uip, 45, médico infectologista, é professor doutor de doenças infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), diretor do Serviço de Saúde da Clínica de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas e coordenador da Casa da Aids.

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