São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997
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Os meios (de comunicação) justificam os fins?

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

O debate sobre a nova Lei de Imprensa continua produzindo mais fumaça do que fogo; e desse infortúnio não escapam nem mesmo juristas reconhecidamente preparados, como Ives Gandra da Silva Martins ("Poder Judiciário e imprensa", Folha, 12/9).
Curioso é que, no grande arco dos "contras", os argumentos vão mudando -é suficiente um Código Penal, não precisamos de mais que uma lei para o direito de resposta, o projeto é corporativo. Só não muda a vontade de deixar tudo como está. E nada nesse caso pode ser pior que não mudar.
Conheço as Leis de Imprensa -algumas dezenas- dos países que nos são culturalmente próximos e posso afirmar, sem hesitação, que a nossa é a pior delas. Mas sobre essa comparação entre legislações esses "contras" não se preocupam. E silenciam sempre.
A tese do momento afirma que a ausência de "limites" à indenização por danos morais pode levar alguns jornais a fechar, representando uma intolerável "ameaça à democracia". Só mesmo rindo.
Nos EUA, a média dessas indenizações fica na faixa de R$ 100 mil a R$ 200 mil, embora em casos específicos possam ir além, como em Leonard Ross x "New York Times" ou Richard Sprague x "Philadelphia Inquirer". Na França, raramente passam dos R$ 20 mil; excepcionalmente, vão a R$ 60 mil.
Na Inglaterra, a única indenização conseguida por Lady Di foi de R$ 1,7 milhão, que o "The Sun" pagou sem reclamar; e ocorreu apenas porque o paparazzo a fotografou em recinto privado, uma academia de ginástica, sem que a foto revelasse nada de mais, salvo as primeiras rugas e celulites, testemunhas mudas da tragédia cotidiana do inexorável passar do tempo.
A regra, em todo canto, é a indenização por dano moral não ter nenhum limite; no Brasil, para essa gente, isso seria uma ameaça à própria liberdade de imprensa. Só mesmo rindo.
Claro que por aqui se encontrará um ou outro julgamento de primeira instância (sobretudo nos "Estados menos desenvolvidos da Federação", no dizer de Ives) fixando limites altos para o dano moral; mas essas indenizações, como sabem todos os que transitam por nossos foros, são invariavelmente reduzidas em recursos a tribunais de Justiça, ao STJ e ao STF. O argumento, no caso, é quase uma chicana.
Pior é que o bom projeto do deputado Vilmar Rocha acabou tendo o acréscimo de estranha cláusula de limitação na indenização, que deverá levar em conta a "capacidade financeira do ofensor, respeitada sua solvabilidade" (art. 6º, 1º).
É a sagração de um passaporte para a impunidade não apenas de jornais pouco "solváveis", que simplesmente nunca responderão por indenização nenhuma (dado que nenhuma seria suportável, qualquer que fosse seu valor), mas sobretudo das grandes corporações de comunicação, que de bom grado aceitarão um preço cômodo para poder dizer o que não deveriam.
Funciona esse debate sobre limites ao dano moral como um derivativo para tirar da ordem do dia a questão central do projeto -o dever que tem o Congresso de recusar essa "solvabilidade".
Um tratamento sério sobre o tema, por isso, deve começar afirmando que na indenização -qualquer uma, inclusive por danos morais- a referência é sempre o ofendido, nunca o ofensor. É de quanto foi o prejuízo injustamente sofrido, não quanto seu causador pode confortavelmente pagar.
Um motorista de táxi que bate na Mercedes de um diretor da Fiesp responde por todo o conserto, independentemente de seu valor. Socialmente justo ou injusto, pouco importa. É assim em todos os países do mundo.
A própria Suprema Corte americana recusou, pouco tempo atrás, a fixação de limites a essas indenizações sem que tenha merecido críticas, como a que agora se escreve, de que a democracia norte-americana estaria ameaçada.
Sem contar que esse limite não existia em nossa anterior Lei de Imprensa, de 1953, como não existe em Lei de Imprensa nenhuma. Engraçado é que, quando tratam do tema, essas leis sinalizam precisamente em sentido contrário, adensando as responsabilidades da imprensa. Como na Espanha (lei 14, de 1966), onde respondem não apenas jornalistas e empresas de comunicação, mas também seus administradores, "salvo se manifestarem oposição formal à notícia" (art. 65). Sem que também a democracia espanhola esteja correndo risco.
Cabe agora aos defensores dessa exótica tese dos "limites", tão agradável aos ouvidos dos proprietários dos meios de comunicação, explicar como a indenização integral por danos (inclusive morais) causados pela notícia pode ameaçar a democracia brasileira quando não ameaça nenhuma outra democracia do planeta.
Claro que muita gente boa, sobretudo por desconhecer a experiência internacional (não é o caso desses juristas), considera que uma imprensa democrática deve ter sempre a mais ampla liberdade de informar.
A esses se diga, como Chesterton, que "o mais terrível do erro é que ele tem heróis sinceros"; e, dando os trâmites por findos, também se diga que uma imprensa verdadeiramente democrática deve ter não apenas a mais ampla liberdade de informar como também a mais ampla responsabilidade no exercício dessa liberdade.

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