São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Uma entidade inexistente

TÂNIA MARQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

John Gledson, autor da tradução de "Dom Casmurro" que integra a coleção da Oxford University Press, é um dos mais respeitados estudiosos da literatura brasileira no exterior, notadamente por seu trabalho em torno da obra de Machado de Assis. Ele tem diversos livros publicados no Brasil, como "Machado de Assis - Impostura e Realismo" (Cia. das Letras, 1991) e a "Semana" (Hucitec, 1996), primeiro volume de sua compilação de crônicas de Machado no jornal "A Gazeta de Notícias".
Graduado em espanhol, Gledson se doutorou com uma tese sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Viria a se interessar por Machado quando, em 1978, o afastamento de um colega o levou a assumir, além da cadeira de poesia brasileira, também a de prosa na Universidade de Liverpool, onde se aposentou em 1995. Foi nessa época que "Ao Vencedor as Batatas", de Roberto Schwarz, lhe apresentou o que lhe pareceu o elemento-chave para a compreensão da obra machadiana e suas complexas inter-relações com a sociedade carioca, então a maior expressão da urbanidade brasileira: as relações de favor, representadas pela figura do agregado.
Entre os planos futuros do professor, incluem-se a continuação do trabalho com as crônicas machadianas, a tradução de livros de Roberto Schwarz e uma biografia intelectual de Machado.
Nesta entrevista, concedida à Folha em sua residência, em Liverpool, Gledson falou, entre outros assuntos, sobre a situação da literatura brasileira nos países de língua inglesa.
*
Folha - Qual é a imagem da literatura brasileira na Europa?
John Gledson - Eu prefiro falar dos países de língua inglesa, porque assim estarei falando com maior conhecimento de causa. O mercado norte-americano, além de maior, tem mais interesse pela América Latina, enquanto o inglês é mais fechado. Mas, até por razões geográficas e de relações comerciais, os norte-americanos tendem a dar mais atenção à literatura dos países de língua espanhola. A divulgação da literatura brasileira, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, tornou-se, depois de 1964, papel de alguns indivíduos isolados. Porém, mesmo com a nítida evolução na qualidade das traduções, as edições, muitas vezes bem cuidadas e a preço acessível, ainda têm tiragens muito limitadas, e a divulgação é frequentemente ruim. A literatura brasileira, como entidade, não existe nos países de língua inglesa.
Folha - O que está publicado e o que falta publicar?
Gledson - Há, obviamente, a tendência de se publicarem os clássicos ou semiclássicos -e nessa categoria praticamente tudo já foi publicado. Outras vezes, a publicação acontece um pouco ao acaso. Ao se consultar a "Babel Guide - Portugal, Brazil and Africa", que serve de guia para a ficção de língua portuguesa em tradução publicada na Inglaterra, verifica-se que o número de obras já disponibilizadas é até relativamente grande. Mas a análise numérica é ilusória, porque os lançamentos são efêmeros e descontínuos.
Folha - O sr. vê alguma perspectiva de mudança nesse quadro?
Gledson - Embora seja muito temerário identificar uma tendência de aumento do interesse pela cultura brasileira, alguns fatos recentes indicam uma certa evolução. O próprio lançamento do "Babel Guide" é, pelo menos para olhos mais otimistas, um bom sinal. Além disso, David Treece, chefe do departamento de português do King's College, montou o Centro para o Estudo da Cultura e da Sociedade Brasileira. De seu lado, o Ministério da Educação e a Biblioteca Nacional vêm tentando incentivar projetos de publicação de literatura brasileira no exterior, o que é um esforço válido, mas não acho que a solução para o problema vá se dar por meio de um plano oficial.
Folha - Que imagem o inglês médio tem do Brasil?
Gledson - O senso comum sofre de profunda ignorância sobre a América Latina como um todo. O jornalismo inglês praticamente se interessa só pela Europa, Estados Unidos e outras ex-colônias da Inglaterra. A América Latina só vai à TV na ocorrência de algum terremoto ou outro grande desastre natural. Uma boa parte dos ingleses nem sequer sabe que a língua falada no Brasil é o português, não o espanhol. Evidentemente, essa desinformação generalizada distorce muito a visão e gera imagens igualmente distorcidas. Verifica-se, de modo geral, uma tendência a idealizar os brasileiros, estereotipados como os felizes habitantes de Eldorado ou, ao contrário, como uma horda de miseráveis absolutamente infelizes. As duas visões são preconceituosas e refletem um projeto político de tornar as barreiras que separam o Primeiro e o Terceiro Mundos cada vez mais espessas.
Folha - Nesse contexto, quem é o leitor de literatura brasileira nos países de língua inglesa?
Gledson - Há, basicamente, dois tipos, embora se possa encontrar diversas gradações entre os extremos. O primeiro é o indivíduo que quer avalizar os próprios mitos. O segundo geralmente é um estudante graduando-se nos idiomas ou nas culturas latino-americanas, pessoas que, por um motivo ou por outro, acabaram se interessando pela América Latina e pelo Brasil. Este obviamente é mais curioso e está mais aberto à assimilação de aspectos da cultura brasileira que lhe são estranhos.
Folha - Os ingleses acreditam na existência de vida inteligente no Brasil?
Gledson - É, parece que, de um modo geral, não. Entre os estudantes, o que eu sinto é que Gilberto Freyre e Euclides da Cunha são considerados inteligentes, mas um pouco ingênuos, um pouco rudes. Mas quase todos se rendem à leitura de, por exemplo, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, que passam a considerar como intelectuais bastante respeitáveis. É pena que Drummond, que chegou a pensar em concorrer ao Prêmio Nobel, tenha desistido da idéia, porque teria sido bom que ele ganhasse. E é curioso constatar que tanto ele quanto Machado, apesar de nunca terem viajado -Drummond só foi à Argentina, na década de 50, para visitar a filha-, leram muita literatura européia, sem falsos nacionalismos. São, talvez com João Cabral de Melo Neto, os escritores com a atitude mais coerente perante o Brasil e a expressão linguística brasileira, os mais "terra-terra".
Folha - Como o sr. contextualizaria a literatura brasileira na literatura universal?
Gledson - Bem, eu sei que com isso estou fazendo um pouco o jogo da bolsa de valores, mas, se eu tivesse de estabelecer um cânone, colocaria Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos e Clarice Lispector no elenco, excluindo Gilberto Freyre e Euclides. Os escritores de minha preferência têm uma postura extremamente humana, jamais se endeusaram -Clarice não tem culpa da maneira como vem sendo cultuada, e eu honestamente acredito que ela não teria gostado nada de se transformar em uma espécie de símbolo religioso do feminismo caricatural.
À exceção de Graciliano, que em geral é quase ríspido e, em "Memórias do Cárcere", na minha opinião seu melhor livro, torna-se propositalmente áspero, eles têm em comum também o humor. Por outro lado, nenhum deles pode ser classificado de exótico, embora sejam todos muito brasileiros. Pode-se ser muito brasileiro sem falar em índio e palmeira, pois, como lembrou Borges, não há nem sequer um camelo no Corão.
Folha - À exceção das obras de Rosa e Graciliano, o regionalismo vem-se tornando cada vez mais malvisto pela crítica brasileira, que chega a considerá-lo ruim. Como o senhor vê a questão?
Gledson - É claro que não se pode nivelar um José Lins do Rego, ou uma Rachel de Queiroz, com escritores do porte de um Graciliano Ramos ou de um Guimarães Rosa. E eu acabei de dizer que, na obra de Graciliano, minha preferência recai sobre "Memórias do Cárcere", que não é regionalista. Mas o regionalismo teve o seu momento e, agora, seria muito bom que escritores do sul do Brasil, do Pará, do Amazonas deixassem de se identificar como tal.
Folha - Que tendências o sr. identifica na literatura brasileira contemporânea?
Gledson - Há de se admitir que o Brasil atravessa agora uma certa crise na ficção. Parece que não surge um autor que empolgue o público e, simultaneamente, apresente boa qualidade literária. Estabelece-se uma dicotomia entre o best seller e o livro artístico que ninguém lê. Mas o problema parece ter também raízes mercadológicas: as editoras publicam pouca literatura nacional e a imprensa abre muito pouco espaço para ela. As publicações literárias brasileiras, sejam independentes, sejam suplementos dos grandes jornais, são efêmeras, parece que não se aposta na possibilidade de existência de uma vida literária.
Folha - A crítica brasileira é por vezes acusada de ser muito complacente. O que o sr. acha disso?
Gledson - Bem, às vezes é mesmo, mas oscila entre a complacência e ataques indevidos e mal fundamentados. Ou seja: parece aprovar ou atacar de uma maneira exageradamente fácil. Sobretudo nos jornais, que às vezes são até bem informativos, sinto que há um certo ambiente de panelinha que em nada contribui para a repercussão da literatura no Brasil.
Folha - Como foi a experiência de traduzir "Dom Casmurro"?
Gledson - Nada fácil. Não consegui traduzir mais de 4,5 páginas por dia. Machado de Assis, como aliás também Clarice Lispector, confere um sabor ligeiramente estranho à linguagem, e eu às vezes temo que o leitor desconfie do meu trabalho ao deparar com uma estrutura mais inusitada.

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