São Paulo, sexta-feira, 4 de dezembro de 1998
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Sociedade emergente, TV e democracia

MAURO ALVES GARCIA

O sucesso do plano de estabilização do governo propiciou uma série de mudanças importantes na sociedade brasileira, principalmente com a redução da pobreza e a consequente inserção dos mais pobres na sociedade de consumo. A distribuição de renda proporcionada pelo final do processo inflacionário agudo acarretou mudanças importantes e imediatas no equilíbrio da pirâmide socioeconômica brasileira.
Dentro desse processo, alguns milhões de brasileiros tornaram-se consumidores sem que se houvessem tornado cidadãos plenos, antes de conhecer com clareza e dominar os direitos e deveres da cidadania (apesar do exercício eventual do direito e do dever de voto).
Em um dos aspectos materiais dessa mudança e desse novo consumo, foram vendidos televisores para 10 milhões de lares após o advento do Plano Real, o que transformou esses consumidores emergentes em telespectadores. Talvez isso pudesse explicar o sucesso de programas que adotaram a vulgarização como princípio básico na programação das redes abertas de televisão, nada adequados a nossos cidadãos-telespectadores.
O que todo cidadão-telespectador deseja (e cobrará) da mídia -ou da nova mídia que, certamente, se exigirá neste final de século- é que os veículos promovam a difusão de informações de qualidade (inclusive sobre a sociedade e o Estado, a educação e a cultura). Esse é seu papel para contribuir de forma efetiva com a formação e o aprimoramento da cidadania, a melhoria da qualidade de vida e a afirmação de nossa cultura, nossos valores e nossas tradições, em sua maioria ainda desconhecidos da própria população. Vamos lembrar aqui, por oportuno, que televisão é concessão pública; o que se espera dos detentores dessa concessão é o exercício da finalidade pública.
A TV de canal aberto atende hoje principalmente às classes C, D e E, com destaque para a base da nossa pirâmide socioeconômica, e traz para sua programação o conceito de que a arte imita a vida ("mundo cão"), comprometendo significativamente seu papel social e abstraindo-se da responsabilidade de funcionar como elemento de transformação da sociedade. A exceção, até em termos de participação no mercado, fica por conta das emissoras públicas, as chamadas TVs educativas.
Em alguns momentos da nossa história recente, essas emissoras levaram ao extremo a sua missão educativa, chegando a desempenhar o papel de professor, substituindo o mestre e a sala de aula. Depois, evoluíram com as políticas de educação, procurando cumprir seu papel de instrumento auxiliar na formação plena de cidadãos, os quais chamei de cidadãos-telespectadores.
A preocupação excessiva com o domínio de segmentos de mercado (e com o faturamento e o lucro a ele associados) e a utilização de veículos de comunicação de massa como instrumentos de ação político-partidária e ideológica constituem riscos para o cumprimento do espírito da concessão pública nas redes de TV; por tal importância, devem ser evitados.
Atento ao papel fundamental das emissoras públicas, o governo apresentou uma solução devidamente aprovada e transformada em lei pelo Congresso, possibilitando a criação das organizações sociais -forma extremamente moderna de controle social sobre o Estado. A antiga Fundação Roquette Pinto (a TVE) é a primeira experiência prática nesse sentido, saindo do assistencialismo e da subordinação ao governo para tornar-se uma prestadora de serviços públicos, com missão e metas definidas em contrato de gestão, administração autônoma, responsabilidade e, principalmente, gestão por intermédio de um conselho de administração integrado por representantes do Estado e da sociedade civil.
O êxito dessa experiência e de outras semelhantes será a maior garantia de que os brasileiros, principalmente os excluídos e os mais pobres, terão acesso à educação e à informação, destinado a capacitá-los como cidadãos plenos e não a mantê-los em posição à margem da sociedade, sob a ótica ilusória de um mundo cão ou róseo.
O primeiro passo contra esse mercado distorcido foi a transformação da TVE em organização social. O segundo é o início da formação da Rede Pública de Televisão, a partir da associação entre a TVE e a TV Cultura de São Paulo.
Caminhamos, assim, para criar uma alternativa verdadeira às redes comerciais com a formação de uma TV pública brasileira, voltada para a ampliação do acesso à informação, para a inclusão dos até então excluídos e para o exercício do papel público de formar cidadãos livres e independentes.
Não há dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, a sociedade e esses novos cidadãos brasileiros saberão também cobrar a parte de responsabilidade social que cabe às demais emissoras.

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