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Crítica / "A Ressurreição de Adam"
Filme capta essência do Holocausto
Longa de Paul Schrader aborda com violência e preocupação espiritual inéditas a perseguição dos judeus pelo nazismo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
No começo dessa história, Adam Stein é um
simpático comediante
judeu que diverte as plateias
berlinenses, ora com números
de magia, ora com humor.
Mas, já no plano de abertura,
algo de muito estranho se passa: vemos seu rosto, em plano
bem fechado; um olho se move
intensamente, enquanto o outro permanece estático. Há algo
muito estranho no mundo de
Adam. No mundo todo, aliás.
Anos mais tarde, recolhido a
um campo de extermínio nazista, Adam é obrigado pelo chefe
do lugar a se passar por cachorro durante a detenção. Ele será
o cão do chefe. Ele é um sobrevivente. Mas passar por um
campo de extermínio implica
morrer em vários sentidos.
Num outro momento, reencontramos Adam em Israel, em
1961. Ele é recolhido (e não pela
primeira vez) a uma instituição
especializada no tratamento
dos sobreviventes de campos
de extermínio.
É com esses dois tempos, basicamente, que trabalha o filme
de Paul Schrader: o do sofrimento inominável na guerra e o
dos seus reflexos sobre o futuro
das vítimas. Sobreviver nos
campos é uma tragédia quase
igual a morrer.
Como se trata de um filme de
Schrader, Deus está implicado,
claro. E se em determinado
momento Adam pode, com seu
humor sempre afiado, lembrar
a alguém que "Deus saiu para o
almoço", a premissa do autor
americano, humor à parte, é de
que Deus se ausenta quando
mais o homem necessita dele.
Adam não terá direito ao paraíso. Nascido homem de Berlim, o destino o tornará homem
do campo. E há, a rigor, dois
campos: o dos nazistas e o de
tratamento, num deserto: formas de isolamento a que são
submetidas pessoas como ele.
Essa não é a única questão
tratada pelo filme. Trata-se de
um filme sobre o Holocausto.
Não mais um filme, talvez "o"
filme sobre o tema. Nada a ver
com o água com açúcar de
Spielberg nem com a vergonhosa comédia de Benigni.
Para Adam, Berlim é o paraíso. O nazismo é a queda. Queda
de que um humorista como ele
parece não se dar conta imediatamente. Ora, o nazismo não
tem nenhum senso de humor,
exceto quando pode ser assimilado à morte (física ou moral).
O próximo passo é o campo
de extermínio. Ali ele é poupado. Por ser humorista, músico,
ou cachorro? Por tudo isso ao
mesmo tempo. Ou, pior ainda:
ele é poupado por um ex-suicida, para quem sobreviver talvez
seja castigo pior que morrer. É
assim que se passa com Adam,
o cão, o melhor amigo do homem (o chefe do campo).
Entende-se melhor, agora,
por que um olho gira e o outro
permanece estático, como se
fossem duas mentes em apenas
uma. Apenas o encontro com
um menino-cachorro ajudará a
dissolver essa duplicidade (ou a
torná-la aceitável).
Em outro nível, Schrader
pensa, é claro, na culpa cristã
(ele, que cresceu batista antes
de se converter ao cinema),
nessa imensa e provavelmente
irresgatável culpa do cristianismo pelas perseguições milenares aos judeus. Nunca antes,
não que eu me lembre, um filme tratou com tal violência,
mas, também, com tamanha
preocupação espiritual, essa
nódoa irreparável do século 20
que foi a tentativa de extermínio dos judeus pelo nazismo.
Schrader lhe concede o estatuto que deve ter de sagrado;
não faz disso espetáculo, mas
constatação desesperada. O filme talvez esteja, nesse sentido,
na primeira imagem, na que
mostra os olhos de Jeff Goldblum. A desordem do corpo, de
nosso corpo (social) inteiro, se
encontra, de certa forma, ali.
A RESSUREIÇÃO DE ADAM
Quando: hoje, às 22h, no Cine Bombril (16 anos)
Avaliação: ótimo
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