São Paulo, quarta-feira, 04 de novembro de 2009

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Crítica / "A Ressurreição de Adam"

Filme capta essência do Holocausto

Longa de Paul Schrader aborda com violência e preocupação espiritual inéditas a perseguição dos judeus pelo nazismo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

No começo dessa história, Adam Stein é um simpático comediante judeu que diverte as plateias berlinenses, ora com números de magia, ora com humor.
Mas, já no plano de abertura, algo de muito estranho se passa: vemos seu rosto, em plano bem fechado; um olho se move intensamente, enquanto o outro permanece estático. Há algo muito estranho no mundo de Adam. No mundo todo, aliás.
Anos mais tarde, recolhido a um campo de extermínio nazista, Adam é obrigado pelo chefe do lugar a se passar por cachorro durante a detenção. Ele será o cão do chefe. Ele é um sobrevivente. Mas passar por um campo de extermínio implica morrer em vários sentidos.
Num outro momento, reencontramos Adam em Israel, em 1961. Ele é recolhido (e não pela primeira vez) a uma instituição especializada no tratamento dos sobreviventes de campos de extermínio.
É com esses dois tempos, basicamente, que trabalha o filme de Paul Schrader: o do sofrimento inominável na guerra e o dos seus reflexos sobre o futuro das vítimas. Sobreviver nos campos é uma tragédia quase igual a morrer.
Como se trata de um filme de Schrader, Deus está implicado, claro. E se em determinado momento Adam pode, com seu humor sempre afiado, lembrar a alguém que "Deus saiu para o almoço", a premissa do autor americano, humor à parte, é de que Deus se ausenta quando mais o homem necessita dele.
Adam não terá direito ao paraíso. Nascido homem de Berlim, o destino o tornará homem do campo. E há, a rigor, dois campos: o dos nazistas e o de tratamento, num deserto: formas de isolamento a que são submetidas pessoas como ele.
Essa não é a única questão tratada pelo filme. Trata-se de um filme sobre o Holocausto. Não mais um filme, talvez "o" filme sobre o tema. Nada a ver com o água com açúcar de Spielberg nem com a vergonhosa comédia de Benigni.
Para Adam, Berlim é o paraíso. O nazismo é a queda. Queda de que um humorista como ele parece não se dar conta imediatamente. Ora, o nazismo não tem nenhum senso de humor, exceto quando pode ser assimilado à morte (física ou moral).
O próximo passo é o campo de extermínio. Ali ele é poupado. Por ser humorista, músico, ou cachorro? Por tudo isso ao mesmo tempo. Ou, pior ainda: ele é poupado por um ex-suicida, para quem sobreviver talvez seja castigo pior que morrer. É assim que se passa com Adam, o cão, o melhor amigo do homem (o chefe do campo).
Entende-se melhor, agora, por que um olho gira e o outro permanece estático, como se fossem duas mentes em apenas uma. Apenas o encontro com um menino-cachorro ajudará a dissolver essa duplicidade (ou a torná-la aceitável).
Em outro nível, Schrader pensa, é claro, na culpa cristã (ele, que cresceu batista antes de se converter ao cinema), nessa imensa e provavelmente irresgatável culpa do cristianismo pelas perseguições milenares aos judeus. Nunca antes, não que eu me lembre, um filme tratou com tal violência, mas, também, com tamanha preocupação espiritual, essa nódoa irreparável do século 20 que foi a tentativa de extermínio dos judeus pelo nazismo.
Schrader lhe concede o estatuto que deve ter de sagrado; não faz disso espetáculo, mas constatação desesperada. O filme talvez esteja, nesse sentido, na primeira imagem, na que mostra os olhos de Jeff Goldblum. A desordem do corpo, de nosso corpo (social) inteiro, se encontra, de certa forma, ali.


A RESSUREIÇÃO DE ADAM

Quando: hoje, às 22h, no Cine Bombril (16 anos)
Avaliação: ótimo




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