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São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2003

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CRÍTICA

Diretora Li Shaohong aborda os excluídos do movimento chinês de 1949 com uma visão que defende a sensualidade

Divulgação
Cena de "Blush" (1995), dirigido por Li Shaohong; com enfoque feminista, filme retrata os efeitos da Revolução Chinesa (1949) sobre um grupo de mulheres


"Blush" renega o sentido coletivo das revoluções

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Estamos na Revolução Chinesa. As tropas de Mao tomam Xangai. Qual sua primeira preocupação? Não é fazer a reforma agrária, moradia para todos etc. Tudo isso virá depois. A primeira preocupação é fechar os bordéis.
Isso é o que vemos já no começo de "Blush". Faz sentido: bordéis são, mais do que bordéis, símbolo de tudo o que o comunismo combate. O mercado do amor é, dessa perspectiva, a perversidade maior do capitalismo.
A diretora Li Shaohong não parece ver as coisas assim. Nessa cena de abertura, vemos jovens bonitas, sensuais, bem vestidas, serem arrancadas do lugar onde vivem aos trancos por mulheres da Guarda Vermelha.
Desde aí tomamos partido: a Guarda Vermelha é o reduto da feiúra, da rigidez, do militarismo. Não são sádicas, as mulheres da guarda. Elas pretendem, honestamente, salvar as garotas, reeducá-las, transformá-las em honestas operárias.
Há no filme um diálogo cortante. Ao receber seu salário, a bela Xiao'e reclama de que aquilo é uma merreca. Pelo menos é dinheiro limpo, responde a supervisora. Ao que Xiao'e retruca que dinheiro não é sujo nem limpo: dinheiro é dinheiro.
"Blush" é de 1995. A revolução, de 1949. A revolução mudou nesses quase 50 anos. Ou em todo caso a percepção que se pode ter dela. "Blush" nos fala dos excluídos da revolução.
Há, primeiro, Qiuyi, aparentemente a garota número um do prostíbulo. A mais esperta. Ela consegue fugir do processo de reeducação e encontrar um rico cliente, Lao Pu. Este ainda não teve as terras confiscadas, vive na farra, como nos tempos do antigo regime, e é apaixonado por Qiuyi o bastante para colocá-la dentro de sua casa, mas não o bastante para enfrentar a hostilidade materna. Rejeitada, Qiuyi recolhe-se em um monastério, onde também não terá vida fácil.
Xiao'e também não resiste ao processo de reeducação. Abandona a fábrica e vai ao encontro de Lao Pu. Ela procura por Qiuyi, sua mentora. Como não a encontra, acaba fazendo o que sabe fazer melhor: transa com Lao Pu. Da transa passaremos ao casamento (nesse ponto Lao Pu já está pobre). Mas será a garota capaz de viver longe do luxo? E qual será o destino de Qiuyi?
A intriga está lançada, e bem merece esse nome: é um bocado intrigante. O cinema oriental, desde o tempo em que imperavam os japoneses, sempre observou com carinho o destino da mulher. Kenji Mizoguchi ocupava-se com frequência das prostitutas e de seu destino habitualmente triste. Recentemente, vários diretores chineses também trataram da questão feminina.
Mas coube a uma mulher observar essa história por um ponto de vista bem original: a defesa da sensualidade (apanágio das cortesãs) em oposição à secura revolucionária.
O que uma revolução traz ao mundo é a certeza positiva em um destino. Ela provê a existência de um sentido e, meio automaticamente, rejeita ao limbo os sentidos anteriores ou mesmo os não-sentidos. Para o bem ou para o mal, ela observa a sociedade em bloco. Não se detém sobre destinos individuais.
Daí o interesse deste filme bem feminino, que nega esse sentido prévio, claro e definitivo a que as revoluções pretendem limitar a vida e atira seus personagens no reino mais amplo, embora não raro mais amargo, da opacidade. Vale para as revoluções, é verdade, mas não só para elas.


Blush
Idem
   
Produção: China/Hong Kong, 1995
Direção: Li Shaohong
Com: Ji Wang, Zhiwen Wang, Caifei He
Quando: hoje, no Cinesesc



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