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CRÍTICA
Diretora Li Shaohong aborda os excluídos do movimento chinês de 1949 com uma visão que defende a sensualidade
Divulgação
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Cena de "Blush" (1995), dirigido por Li Shaohong; com enfoque feminista, filme retrata os efeitos da Revolução Chinesa (1949) sobre um grupo de mulheres |
"Blush" renega o sentido coletivo das revoluções
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Estamos na Revolução Chinesa. As tropas de Mao tomam Xangai. Qual sua primeira
preocupação? Não é fazer a reforma agrária, moradia para todos etc. Tudo isso virá depois. A
primeira preocupação é fechar
os bordéis.
Isso é o que vemos já no começo de "Blush". Faz sentido: bordéis são, mais do que bordéis,
símbolo de tudo o que o comunismo combate. O mercado do
amor é, dessa perspectiva, a perversidade maior do capitalismo.
A diretora Li Shaohong não
parece ver as coisas assim. Nessa
cena de abertura, vemos jovens
bonitas, sensuais, bem vestidas,
serem arrancadas do lugar onde
vivem aos trancos por mulheres
da Guarda Vermelha.
Desde aí tomamos partido: a
Guarda Vermelha é o reduto da
feiúra, da rigidez, do militarismo. Não são sádicas, as mulheres da guarda. Elas pretendem,
honestamente, salvar as garotas,
reeducá-las, transformá-las em
honestas operárias.
Há no filme um diálogo cortante. Ao receber seu salário, a
bela Xiao'e reclama de que aquilo é uma merreca. Pelo menos é
dinheiro limpo, responde a supervisora. Ao que Xiao'e retruca
que dinheiro não é sujo nem limpo: dinheiro é dinheiro.
"Blush" é de 1995. A revolução,
de 1949. A revolução mudou nesses quase 50 anos. Ou em todo
caso a percepção que se pode ter
dela. "Blush" nos fala dos excluídos da revolução.
Há, primeiro, Qiuyi, aparentemente a garota número um do
prostíbulo. A mais esperta. Ela
consegue fugir do processo de
reeducação e encontrar um rico
cliente, Lao Pu. Este ainda não
teve as terras confiscadas, vive na
farra, como nos tempos do antigo regime, e é apaixonado por
Qiuyi o bastante para colocá-la
dentro de sua casa, mas não o
bastante para enfrentar a hostilidade materna. Rejeitada, Qiuyi
recolhe-se em um monastério,
onde também não terá vida fácil.
Xiao'e também não resiste ao
processo de reeducação. Abandona a fábrica e vai ao encontro
de Lao Pu. Ela procura por Qiuyi,
sua mentora. Como não a encontra, acaba fazendo o que sabe
fazer melhor: transa com Lao Pu.
Da transa passaremos ao casamento (nesse ponto Lao Pu já está pobre). Mas será a garota capaz de viver longe do luxo? E
qual será o destino de Qiuyi?
A intriga está lançada, e bem
merece esse nome: é um bocado
intrigante. O cinema oriental,
desde o tempo em que imperavam os japoneses, sempre observou com carinho o destino da
mulher. Kenji Mizoguchi ocupava-se com frequência das prostitutas e de seu destino habitualmente triste. Recentemente, vários diretores chineses também
trataram da questão feminina.
Mas coube a uma mulher observar essa história por um ponto de vista bem original: a defesa
da sensualidade (apanágio das
cortesãs) em oposição à secura
revolucionária.
O que uma revolução traz ao
mundo é a certeza positiva em
um destino. Ela provê a existência de um sentido e, meio automaticamente, rejeita ao limbo os
sentidos anteriores ou mesmo os
não-sentidos. Para o bem ou para o mal, ela observa a sociedade
em bloco. Não se detém sobre
destinos individuais.
Daí o interesse deste filme bem
feminino, que nega esse sentido
prévio, claro e definitivo a que as
revoluções pretendem limitar a
vida e atira seus personagens no
reino mais amplo, embora não
raro mais amargo, da opacidade.
Vale para as revoluções, é verdade, mas não só para elas.
Blush
Idem
Produção: China/Hong Kong, 1995
Direção: Li Shaohong
Com: Ji Wang, Zhiwen Wang, Caifei He
Quando: hoje, no Cinesesc
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