São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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LANTERNA NA POPA
Futurologia na aldeia global

ROBERTO CAMPOS
Não faz muito tempo, alguém do ramo disse que o futuro já não é mais o que era. Tirando a piada, acho que acertou, não sei até que ponto sem querer. Até o século 18, o futuro era uma névoa sombria que, no Ocidente, fechava-se no horizonte do juízo final, que não se esperava devesse demorar muito. E no passado estava sempre a miragem distante de uma idade de ouro, ou do paraíso perdido.
Um século antes, os sensatos ingleses haviam começado a formular concretamente os princípios do liberalismo político. Mas, chegado o século das luzes, o homem já havia aprendido a fazer estripulias tecnológicas e outras, em escala global, e estava dominando o resto do mundo com seus navios e canhões. Os franceses, acostumados ao raciocínio linear que tirou o nome do grande filósofo e matemático Descartes, por um lado, puseram no papel a tecnologia da época, com a "Enciclopédia" (cujas deliciosas gravuras são muito apreciadas até hoje), e também a teoria do radicalismo político, que iria provocar, na Revolução Francesa, um traumático corte na história.
Reconheça-se, entretanto, que a primeira revolução inspiradora e não menos importante, pelo seu papel na fundação da democracia moderna e no primeiro desafio à Europa, foi a Revolução Americana de 1776. J. J. Rousseau, um louco interessante que abandonou os cinco filhos na roda e escreveu as primeiras "Confissões" autobiográficas modernas, foi também o autor de uma das obras de maior impacto político de todos os tempos, o "Contrato Social", um breviário da igualdade humana que os revolucionários declamavam pelas ruas de Paris. Aliás, cortante com duplo fio, porque a sua noção da "vontade geral", absoluta e infalível, foi o olho d'água em que beberiam, no nosso século, as doutrinas do totalitarismo.
Rousseau estava ainda no divisor de águas da visão do mundo, porque vê o homem como originalmente bom, estragado depois pela sociedade, isto é, de um lado, ainda o mito da idade de ouro primitiva, mas, em outro, a idéia da perfectibilidade pela ação humana deliberada. Pouco tempo depois da Revolução Francesa, um aristocrata que seria entronizado por Marx como "socialista utópico", o conde de Saint-Simon, projetou o que seria o primeiro modelo de economia de comando, em bases estritamente tecnocráticas.
O século 19, porém, curado, na Europa, do quarto de século do vendaval revolucionário e, depois, napoleônico, descobriu o otimismo de longo prazo, a idéia do progresso, que vinha de mãos dadas com a formidável pujança do capitalismo industrial. O nosso século, o "curto século 20", na expressão do simpático e ingênuo marxista inglês Hobsbawm, arquivou esse otimismo. Passou-se a falar no "mal-estar da civilização", pelo contraste entre o elegante refinamento da "belle époque" e o desemprego das crises cíclicas.
Ocorreram depois os traumatismos do entreguerras, com a Grande Depressão capitalista, os expurgos stalinistas e a eclosão do nazi-fascismo levando à 2ª Guerra Mundial. Os efeitos desse "mal-estar civilizado" só se esgotariam no fim da década de 80, com o desabamento do bloco socialista e o encerramento da polarização antagônica que dividia o mundo.
A 1ª Guerra Mundial, de uma brutalidade e, sobretudo, de uma falta de racionalidade que escapavam à compreensão, aconteceu, por assim dizer, sem que os protagonistas soubessem bem por que ou para quê. Ondas de pessimismo quanto ao homem e a seu destino histórico varreram todos os recantos intelectuais, das artes à filosofia. As certezas científicas, que haviam começado a ser abaladas na matemática, na lógica e na física desde algumas décadas antes, não recuperaram mais sua placidez clássica. Mas, em compensação, aceleraram uma frenética criatividade, exponenciada, no universo concreto do dia-a-dia, por uma permanente, furiosa mesmo, explosão tecnológica.
Schumpeter veria na contínua "destruição criativa" a essência do capitalismo. E, na verdade, é uma força revolucionária solta no mundo, que vem transformando tudo num passo que, a cada instante, excede tudo o que até então foi pensado. Nas três primeiras décadas do pós-guerra, quando esteve na moda pelo menos algum planejamento e, estonteados pelo brilho das novas técnicas organizacionais e produtivas, os governos, um tanto à la Saint-Simon, acreditavam na sua capacidade de controle e gerência da economia e do bem-estar social, praticou-se bastante o novo esporte da projeção tecnológica. Ou, em termos menos refinados, da "futurologia".
Aí por volta da segunda metade dos anos 60, chegou-se mesmo a acreditar que isso tinha uma boa base metodológica e teórica. Hoje em dia, os grandes cenários caíram um pouco de cotação. Fazem-se, naturalmente, estudos sérios de prospecção de tendências tecnológicas, inclusive sob o patrocínio da União Européia. E não há empresa de certo porte que não se preze de seus instrumentos de "informação competitiva". Mas me parece que há bastante modéstia nas previsões sobre o que vão ser futuramente as nossas sociedades.
Alguns dados, no entanto, obrigam a pensar. Aí por 2002, espera-se que entre em funcionamento a Teledesic Network, uma rede de centenas de satélites em órbitas baixas, apoiada pela Microsoft e pela Boeing. E será certamente apenas uma entre várias possíveis. Com isso, será possível estender a todo o mundo -literalmente a qualquer biboca no meio da África ou do Tibete, ou do meu Estado natal de Mato Grosso- uma infra-estrutura de informação de alta qualidade, a mesma, de fato, a que se poderia ter acesso nas grandes cidades.
Acontece que, hoje em dia, infra-estrutura física está se tornando quase secundária em relação à da informação e do conhecimento. Dentro das sociedades industrialmente avançadas, as diferenças de classe e status há muito empalideceram, lembranças cada vez mais vagas do tempo em que a Internacional conclamava à união revolucionária as vítimas da fome. O problema, agora, nos países ricos, é muito mais a obesidade. Mas as diferenças de conhecimento são ainda mais cruéis, porque o acesso se faz de modo contínuo, por uma incessante acumulação. Um trabalhador eficiente, em ocupações realmente modernas, não deve ter, hoje, menos do que 12 a 14 anos de formação, em periódica reciclagem. E à verdadeira elite não se chega com menos de 20 anos de estudo duro. E, dizem os mais malévolos, não sem um mínimo de equipamento genético.
No Brasil, tivemos a incrível idiotice da "reserva de mercado" da informática, a forma mais burra, sob o ponto de vista econômico, que se poderia imaginar para proteger uma indústria. Sacrificou-se uma geração. Mas a explosão da informatização, o desenvolvimento da indústria do soft (curiosamente, a não beneficiada pela "reserva"), em que um programa sensato e bem-feito, juntando governo e setor privado, está se traduzindo inclusive na abertura de nichos de exportação (e segundo consta, a existência de talvez já uns 2 milhões de "internautas"), indicam que temos possibilidades de recuperação. De qualquer forma, hoje se premia cada vez mais a rapidez da adaptação e da inovação, e parece que o brasileiro é instintivamente bom nisso.
E também estamos chegando à era da biotecnologia e da engenharia genética. O Projeto do Genoma Humano sugere que os custos do sequenciamento podem vir a cair bastante. Esse é um campo em que o mais importante é o capital humano, e o Brasil tem diante de si um enorme potencial. Se não tivermos novas crises de idiotice, do tipo "o patrimônio genético é nosso" (o típico ignorante pensa que o conhecimento é uma "coisa" que dá para guardar com polícia à vista), poderemos descolar uma vaga na primeira divisão. Há perigos de que o protecionismo genético, advogado por alguns políticos da Amazônia, da mesma forma que o protecionismo informático, acabe atrasando o desenvolvimento de nossa engenharia genética, ao restringir a pesquisa internacional de nossa biodiversidade. Pesquisa internacional cooperativa em alto nível, em vez de pesquisa nacionalista em baixo nível, é o desejável.
Neste nosso país, em que a Embratel e as teles eram obstáculos quase insuperáveis à comunicação das pessoas, o governo está acertando a mão com a privatização, o que podia ter feito, de resto, há bastante mais tempo. Não imagino que nada de imediatamente revolucionário vá acontecer quando o caboclo mato-grossense ligar-se por satélite diretamente com alguém em Sichuan ou em Timbuktu. Mas está se entreabrindo a porta de um mundo novo, em que as questões locais não serão inteiramente separáveis do que acontece em outras partes, e em que as atuais estruturas de intermediação, inclusive políticas, correm risco de rápido envelhecimento.


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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