São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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1964 - 40 ANOS DO GOLPE - 2004

Em 1º de abril de 64, Jango não agiu e, com apoio do governo dos EUA, militares tomaram o poder

O dia em que o Brasil acordou numa ditadura

Acervo UH/Folha Imagem
O presidente Castello Branco (no centro, de terno) é recebido em São Paulo por oficiais do 2º Exército, em maio de 1964


SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

A primeira falácia de 1º de abril de 1964, o dia em que os militares efetivaram seu golpe de direita que colocaria o país numa ditadura de 21 anos, coincidentemente o Dia Internacional da Mentira e do Trote, é que não houve violência.
Como escreveu Elio Gaspari em "A Ditadura Envergonhada" (Companhia das Letras, 2002), aquele dia "começara de fato um gigantesco Dia da Mentira, não só pelo que nele se mentiu, mas sobretudo pelo que dele se falseou".
É verdade que a "revolução" -ou o golpe- foi feita sem nem sequer uma troca de tiros entre conspiradores e conspirados. A principal arma dos generais rebelados, Castello Branco e Costa e Silva à frente, era o telefone.
Mas não é correto dizer que não houve violência. Morreram, sim, sete pessoas em decorrência do golpe já naquele dia (seriam 19 mortos e dois desaparecidos até o fim do ano): três no Rio, dois em Pernambuco, dois em Minas.
Em 1º de abril, em seus últimos momentos à frente do país, Jango foi o presidente do "não": não interveio nos governos de Minas, São Paulo e Guanabara, todos rebelados; não expurgou a parte conspiradora das Forças Armadas, valendo-se do alegado "dispositivo militar" e da simpatia de grande parte da soldadesca, e não convocou os sindicatos aliados.
"Quando eu o encontrei em Porto Alegre, disse que tínhamos milhares de soldados para colocar nas ruas e defender a legalidade, e o general Ladário Teles (comandante do 3º Exército) disse que tinha armas para munir 11 mil civis", afirmou à Folha Leonel Brizola, então deputado federal pelo PTB. "Mas ele não quis resistir."
Logo após o encontro com seu cunhado -Brizola era casado com Neusa, irmã de Jango-, o presidente diria a um tenente que insistia em sua permanência no poder: "Eu não sou revolucionário, o revolucionário é o Brizola aí. Vocês se acertem com ele".
Exilou-se no balneário uruguaio de Solymar, a 40 minutos de Montevidéu, depois de voar para Brasília, Porto Alegre e São Borja (RS). Morreu em 1976, no dia 6 de dezembro, ainda no exílio. "Viveu sufocado pela saudade e morreu dominado pela angústia do degredo", disse à Folha José Gomes Talarico, assessor sindical de Jango e um de seus melhores amigos.

Operação "Brother Sam"
Naquele dia 1º de abril de 1964, constatou-se que o governo dos EUA apoiava a quartelada e que a embaixada norte-americana se envolvera na conspiração. O embaixador Lincoln Gordon mandou recados a governadores e militares rebelados, cujo teor era a recomendação de que o desfecho do golpe pudesse ser visto como legítimo pelos olhos do exterior.
Além disso, no dia anterior, a Casa Branca ordenara o deslocamento de um porta-aviões ("Forrestal") e uma força-tarefa para a área oceânica nas vizinhanças de Santos, a operação "Brother Sam", conforme descobriria Marcos Sá Corrêa, em 76.
No mesmo dia 1º, o diário "The New York Times" anunciava em sua primeira página, num artigo de 1.039 palavras: "Região militar no Brasil se rebela contra Goulart (título principal), "General proclama que cidade 80 milhas ao norte do Rio é "capital revolucionária'" (subtítulo) e "Regime envia tropas" (título secundário).
No Brasil, com exceção do "Última Hora", janguista, a maioria dos jornais do dia criticava o presidente em editoriais.
No Rio, o "Jornal do Brasil" estampou "S.Paulo adere a Minas e anuncia marcha ao Rio contra Goulart" e ""Gorilas" invadem o JB", referindo-se a invasão protagonizada por pelotão de fuzileiros navais fiéis a Jango, que, no dia 31, deram tiros para o ar diante da sede do jornal e invadiram o prédio.
Em São Paulo, a Folha saiu com "Adhemar: 6 Estados sublevam-se para derrubar Goulart" no primeiro clichê e "2º Exército domina o Vale do Paraíba" no final.
As TVs paulistas passaram a sofrer censura prévia por ordem do governador, Adhemar de Barros. A programação de todas as rádios da cidade passou a ser gerada do Palácio da Polícia, em cadeia.
(Isso não afetaria a parte não-noticiosa daquela noite televisiva, em que iriam normalmente ao ar o programa "Hebe, Cynar e Simpatia", às 19h45 no canal 5, e o humorístico "Grande Show", com Consuelo Leandro, às 20h no 7).
Naquele dia, uma quarta-feira, os bancos decidiram fechar suas portas, só reabrindo na segunda seguinte -o medo era que houvesse uma corrida por dinheiro. Houve corrida, mas por alimentos e combustível, o que causou filas nos supermercados e postos.
O jogo daquela noite pelo Torneio Rio-SP, São Paulo e Corinthians no Pacaembu, foi cancelado. Os vôos de avião para a Guanabara foram suspensos. A estrada de ferro Santos-Jundiaí parou.
Mas as aulas continuaram. E os cinemas funcionaram como sempre, exibindo "Irma La Douce", clássico de Billy Wilder (no Olido), "Lawrence da Arábia", épico com Peter O'Toole (Rio Branco) e "O Indomado", western com Paul Newman (Astor e Metrópole).
No teatro, o sucesso era "O Ovo", com Armando Bogus, na Aliança Francesa, e "Pequenos Burgueses", no Oficina, com direção de um jovem José Celso Martinez Corrêa, que ficaria em cartaz com interrupções até 1970.
Naquele dia, o poeta Ferreira Gullar se filiou ao Partido Comunista Brasileiro, o cineasta Eduardo Coutinho interrompeu o documentário "Cabra Marcado para Morrer" (que só seria retomado e concluído 17 anos depois) e o crítico José Ramos Tinhorão foi demitido da TV Excelsior.
E, numa obra de ficção escrita mais de duas décadas depois, Roberto Drummond colocaria sua personagem principal, Hilda Furacão, deixando o bordel em que trabalhava, o Maravilhoso Hotel, no dia 1º de abril de 1964.
Na vida real, no mesmo dia, o Brasil entraria num quarto escuro do qual só sairia 21 anos depois.


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