São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Militares negociaram com Vaticano, diz pesquisador

MURILO FIUZA DE MELO
DA SUCURSAL DO RIO

O governo brasileiro negociou diretamente com o Vaticano a nomeação de bispos e padres no Brasil durante o regime militar, para evitar que religiosos progressistas assumissem postos importantes no país e denunciassem ao mundo casos de tortura e morte.
"O diálogo foi constante. Ocorria entre o Ministério das Relações Exteriores, por meio de sua embaixada na Santa Sé, e a Secretaria de Estado do Vaticano. Pela via diplomática, a ditadura também tentou convencer a Cúria Romana a pedir mais cautela aos bispos brasileiros na crítica pública ao regime", afirma o historiador Sérgio Henrique da Costa Rodrigues, mestrando do Programa de Pós-Graduação em história social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Rodrigues analisou documentação, ainda secreta, guardada no arquivo do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. São telegramas, despachos e ofícios trocados entre o ministério e a embaixada no período de 1964 a 1972. O historiador não pôde tirar cópias dos documentos.
Rodrigues afirma que o Vaticano, em vários momentos, atendeu aos pedidos dos militares. Em outros, tranqüilizava o governo militar sobre a indicação de religiosos para postos-chave da igreja no país, revelando suas tendências ideológicas, como foi o caso de dom Agnello Rossi, nomeado arcebispo de São Paulo, em 1969.
Segundo Rodrigues, os militares foram informados da indicação de dom Agnello com antecedência e que nenhum bispo progressista ocuparia a função.
Telegrama da embaixada brasileira na Santa Sé enviado à Secretaria de Estado do Vaticano, em 23 de dezembro de 1964, revela a preocupação dos militares com o envio de padres italianos supostamente de esquerda para o Brasil.
"Recebi, através do Serviço Nacional de Informações [SNI], a notícia de que o Vaticano, devido à falta de religiosos no Brasil, teria decidido mandar para cá grande número de jovens sacerdotes italianos. A seleção estaria sendo feita por um bispo da chamada "linha católica de esquerda", o que poderia influir negativamente sobre a qualidade e as tendências políticas dos escolhidos", informa a embaixada brasileira no documento endereçado ao Vaticano.
A Cúria Romana, por meio da Secretaria da Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários, desmente a informação seis dias depois.
"Peço-lhe respeitosamente assegurar a seu governo que preocupações como aquelas que lhe foram noticiadas e que vossa excelência nos expôs não têm razão de ser. São destituídas de qualquer fundamento." Depois, o Vaticano informa que a escolha dos padres estava sendo feita pelas arquidioceses de São Paulo e do Rio, de linha mais conservadora.
Outra troca de telegramas, em 1969, mostra que os militares acompanharam de perto a substituição do núncio apostólico no Brasil, dom Sebastião Baggio, pelo monsenhor argentino Umberto Mozzoni. Baggio entrara em conflito com os generais por supostamente defender dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife e um dos maiores opositores da igreja ao regime.
Há dois telegramas secretos pedindo informações sobre o novo núncio apostólico -um enviado ao Vaticano e outro, à embaixada em Buenos Aires. No telegrama 384, de 14 de abril de 1969, o embaixador do Brasil na Argentina tranqüiliza o governo brasileiro, dizendo que Mozzoni "é partidário (...) da evolução, não da subversão. Condena, como se diz, as tendências acentuadamente sociais dos grupos "progressistas'". O telegrama foi entregue pessoalmente ao presidente, Arthur da Costa e Silva, diz o historiador.
O trabalho de Rodrigues contesta o do brasilianista americano Kenneth Serbin, que no livro "Diálogos na Sombra" (2001) afirma ter sido a Comissão Bipartite o principal canal de diálogo entre o regime militar e a igreja.
Idealizada pelo general Antônio Carlos Muricy, ex-chefe do Estado Maior do Exército, e pelo professor Candido Mendes, a Bipartite funcionou de 1970 a 1974 e reuniu generais e bispos em encontros secretos para discutir temas como a ação de religiosos na resistência ao regime e a violação aos direitos humanos pelos militares.
"O presidente Médici não viu nenhum problema na criação da Comissão Bipartite, uma idéia do general Muricy, homem muito religioso. Pelo contrário, ele achava que, com a comissão, era possível cozinhar em banho-maria os bispos que reclamavam publicamente da condução do governo, canalizando suas insatisfações para um fórum secreto, distante do público", diz Rodrigues.
Para os militares, um conflito diplomático com o Vaticano poderia trazer conseqüências políticas desastrosas, como uma condenação do papa Paulo 6º à prática de tortura, o que mancharia a imagem do país no exterior.
Segundo o historiador, os militares não confiavam na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que, apesar de ser a entidade máxima da Igreja Católica no país, poderia ter sua linha de ação questionada pelos subordinados. "Os militares achavam estranho uma organização nacional, como a CNBB, emitir anualmente linhas gerais de ação que podiam ser seguidas ou não pelos bispos locais. A CNBB soltava uma nota apoiando o governo em certo assunto, mas alguns bispos poderiam ter opinião contrária e expressá-la publicamente", diz.


Texto Anterior: EUA enviariam armas em 16 horas ao país
Próximo Texto: Almino Affonso: Jango, 40 anos depois
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.