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Jango, 40 anos depois
ALMINO AFFONSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Passados 40 anos do golpe de
Estado de 1964, é hora de abrir espaço à figura do presidente João
Goulart, em termos humanos e
históricos, superando a intolerância com que ainda lhe envolvem o
nome e que impede revê-lo sem
as maldições de seus adversários.
Parece incrível que o Chile possa reencontrar-se com a imagem
do presidente Salvador Allende,
analisando-lhe o significado histórico, enquanto entre nós, João
Goulart, morto há 28 anos, continua sendo o proscrito.
Alguns fatos precisam ser relembrados, como introdução à
análise histórica daqueles anos tumultuados que antecedem a ruptura da ordem constitucional.
Desde logo, importa assinalar
uma verdade fundamental: com a
renúncia de Jânio Quadros e o veto aposto pelos chefes militares à
posse do vice-presidente João
Goulart, o país entrou em profunda crise institucional da qual
emergiu graças à intervenção do
Rio Grande do Sul, de armas na
mão, sob a liderança do então governador Leonel Brizola e do general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, bem como
do governador Mauro Borges,
que também levantara Goiás em
pé de guerra.
Como solução de emergência, o
Congresso, através do chamado
Ato Adicional, instituiu o sistema
parlamentar de governo. Permitia
a João Goulart assumir a chefia do
Estado; mas os poderes de "governar" passavam a ser prerrogativa do primeiro-ministro, vale
dizer de Tancredo Neves.
O governo, que assim se constituíra, fora um esbulho. A rigor,
fora um "golpe branco", se quisermos revê-lo à luz da Constituição de 1946. Mas, apesar da coalizão política que, nos primeiros
meses, incluía a própria UDN, a
conspiração de civis e militares
ressurgiu de imediato, seja com o
objetivo de consolidar o parlamentarismo, escamoteando a
consulta plebiscitária, seja para
consumar o golpe de Estado.
Nesse contexto, o "Sistema Parlamentar de Governo" se exauriu
sem mais demora. Instaurado a 7
de setembro de 1961, com a posse
de João Goulart, a 23 de janeiro de
1963 já cedia lugar à restauração
presidencialista, por força de uma
decisão plebiscitária, com o respaldo de 10 milhões de votos.
João Goulart assumiu a Presidência pressionado pelas limitações econômicas e pelas crescentes demandas sociais, que o próprio discurso do Partido Trabalhista Brasileiro ativava na cidade
e no campo. É oportuno outra vez
destacar a escassez de tempo de
que dispôs João Goulart, já então
em plena vigência do "presidencialismo": assumira a 23 de janeiro de 1963 e fora apeado do poder
a 2 de abril de 1964. Portanto, sufocado nos limites de 1 ano, 2 meses e 10 dias! Custa crer, mas esse
foi de fato o seu mandato.
Pode alguém, que não seja um
escriba do golpismo, argüir contra João Goulart a incapacidade
administrativa? Pois é hora, ao
contrário, de ressaltar o quanto
logrou fazer, enfrentando simultaneamente tantas questões! Com
efeito, no âmbito político, através
de uma legislação cada vez mais
atenta aos interesses nacionais, o
país erguia a fronte: lei n.º 4.117/
62, que definia o Código Brasileiro de Comunicações; lei n.º 4.118/
62, que fixou a política nacional
de energia nuclear; além das proposições, na Mensagem ao Congresso Nacional, relativas à supressão do art. 141, parágrafo 16,
da Constituição de 1946, que obrigava a indenização da terra desapropriada, pagando-a previamente e em dinheiro, o que estrangulava qualquer projeto de
reforma agrária.
Ao longo de 1963, outras medidas foram propostas ou aprovadas: o decreto n.º 53.337/63, que
instituía o monopólio de importação de petróleo; o Plano Nacional de Telecomunicações, vinculado à criação da Embratel; a cassação de todas as concessões de
pesquisa e lavra de minérios que
infringiam as disposições do Código de Minas e da Constituição;
sem esquecer a política externa
independente, realizada com brilho por San Tiago Dantas.
Além desse registro sumário, é
justo acrescentar alguns aspectos
marcantes de João Goulart: consolidou a Petrobrás e implantou a
Eletrobrás. Deu dimensão estratégica à questão da reforma agrária, assumindo-a como nenhum
outro presidente, até então, ousara fazer. Ousou dizer "não" aos
EUA, que se aprestavam a invadir
Cuba. E resistiu aos apelos de uma
guerra civil, quando lhe usurparam os poderes de presidente, na
chamada "crise da legalidade".
Os pregoeiros do golpismo centravam fogo, sem trégua, no governo João Goulart, alegando que
o presidente tramava a ruptura da
ordem constitucional, que abria
as portas institucionais aos avanços comunistas e deixava, por
ação ou omissão, que a corrupção
se encastelasse no Estado.
Os fatos se encarregaram de
destruir essa montagem de falseadores. Onde estava a articulação
do golpe atribuído a Goulart, a ele
que foi destituído sem ter condições de desferir um só tiro de resistência? Nem logrou fazê-lo
através das Forças Armadas (com
as quais, portanto, não conspirava), nem muito menos valendo-se
de redutos nos sindicatos urbanos, nas Ligas Camponesas, nem
tampouco nos "Grupos dos 11",
que se esgotavam na pregação ingênua de alguns poucos, sem um
bodoque sequer?
Entrever no governo João Goulart (grande proprietário de terras
no Rio Grande do Sul) a cumplicidade com a ascensão comunista
chegava a ser ridículo. Mas não se
pejavam de fazê-lo, até mesmo pela
palavra do deputado Bilac Pinto,
renomado jurista,
que acusava o presidente de estar levando o país a
uma "guerra de
guerrilhas". Tanto
absurdo, para
quê? Para impedirem que prosperassem as reformas sociais, então
chamadas "reformas de base", sobretudo a reforma agrária.
Bastava olhar as personalidades
que compunham o ministério de
João Goulart para constatar a distância entre o embuste da política
menor e a grandeza de seus propósitos. Relembro alguns nomes,
a título de exemplo: João Mangabeira, San Thiago Dantas, Teotônio Monteiro de Barros, Eliezer
Batista, José Ermírio de Moraes,
Celso Furtado, Carvalho Pinto,
Paulo de Tarso dos Santos, Evandro Lins e Silva, Darcy Ribeiro,
Oswaldo Lima Filho; em tudo semelhante ao que ocorrera na formação dos gabinetes parlamentaristas, engrandecidos pelas presenças de Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Franco Montoro,
Brochado da Rocha, Gabriel Passos, além de outras figuras de renome. Haveria de ser com homens desse estofo, com a visão
política que os caracterizava, que
João Goulart se preparava para
golpear as instituições e instaurar
o regime comunista?
Da corrupção, com que procuraram enlameá-lo, basta ter presente a contundência de um fato:
multiplicaram-se os Inquéritos
Policiais Militares, vasculhando a
vida de João Goulart, no afã de denegri-lo para sempre. Anos a fio
de investigações com poderes absolutos! E se viram os vitoriosos
do golpe, nos sucessivos governos
militares, obrigados a engolir em
seco as sentenças absolutórias.
Evoco o testemunho do senador
Pedro Simon, em discurso no
Congresso, por ocasião do 20º
aniversário da morte de João
Goulart. Dizia-nos o grande batalhador gaúcho que a revista "Time-Life" publicara que João Goulart, enriquecendo-se no poder,
comprara fazendas e mais fazendas. O presidente, já então no exílio, ferido em sua honra, fora a um
cartório, em Montevidéu, e outorgara procuração favorecendo o
diretor-presidente da "Time-Life", que se adonaria, por US$ 1, de
cada fazenda que houvesse em
nome dele, de sua mulher ou de
seus filhos, desde que adquiridas
enquanto estivera na Presidência.
Apesar das falsidades haverem
sido destroçadas pelos fatos, ainda hoje persistem indagações ferinas, numa crueldade que revolta
porque agridem o homem público e são injustas com o cidadão; e,
como se não bastasse, apagam-lhe com o silêncio a memória de
seus merecimentos. De todo modo, supondo que o tempo já nos
permite ter voz de ser ouvida, enfrento as crônicas apressadas e,
arrolando fatos e argumentos,
sinto-me à vontade para dizer que
o presidente João Goulart honrou
o mandato que lhe foi reiterado e
merece, por isso mesmo, o respeito da posteridade.
Não faltam
cientistas sociais
que proclamam
que João Goulart,
por ver-se ao desamparo do apoio
do povo, capitulou sem levantar a
menor resistência
às tropas insurgentes. É hora de
enfrentar essa balela. Dos generais
que abandonaram as trincheiras
da ordem constitucional, prefiro
não falar. Mas dizer-se, como ainda se afirma, que
o povo deixou João Goulart ao desamparo, é falso.
Em 1989, o professor Antonio
Lavareda, em estudo apresentado
no 13º Encontro Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
em Caxambu (MG), referiu-se a
uma pesquisa do Ibope, que remonta a 1963 e 1964, com impressionantes dados sobre o alto índice de aprovação do governo Goulart, conforme reportagem de 12/
1/1990, da revista "IstoÉ".
Na referida pesquisa, realizada
entre os dias 9 e 26 de março de
1964, sendo ouvidas as cidades de
São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Porto Alegre, Recife,
Salvador, Fortaleza e Curitiba,
72% dos entrevistados consideram necessária a realização de
uma reforma agrária.
Na mesma pesquisa, indagara-se se João Goulart deveria apoiar
um candidato à presidência nas
eleições que se avizinhavam: 60%
dos entrevistados responderam
afirmativamente, numa clara demonstração do prestígio político
do presidente.
E outra prova de sua popularidade, que se revela com maior clareza na pesquisa do Ibope, realizada cinco dias antes de o golpe
de Estado ser assumido pelas lideranças civis e militares, é a seguinte: ao serem indagados os entrevistados sobre se votariam em
João Goulart para presidente, supondo-se a hipótese de que, legalmente, lhe fosse possível candidatar-se, 47% disseram que sim.
A tendência da opinião pública
-digo assim, já que a eleição só
se realizaria em 1965- merece
duas análises, que se complementam: um ano antes, em 1963, em
pesquisa idêntica que o Ibope levara a cabo nas mesmas capitais, a
resposta afirmativa fora de 37%.
Portanto, longe de estar em declínio, o presidente João Goulart
crescia na alma do povo.
A outra ponderação é de que
-à época da pesquisa-, admitidas as candidaturas à Presidência
de Juscelino Kubitschek e Carlos
Lacerda, que encarnavam os dois
mais poderosos partidos políticos, em termos eleitorais (o PSD e
a UDN), João Goulart se apresentava com uma preferência de quase 50% dos entrevistados.
Assim sendo, poderíamos enveredar por outras considerações,
sobretudo no âmbito da conduta
militar, recordando generais que
o desampararam, mas não o povo, que lhe continuou a prestigiar
com a confiança de sempre.
Passados 40 anos, considero legítimo afirmar que, se a crise institucional houvesse sido submetida a uma consulta plebiscitária, o
povo a teria dirimido, dando respaldo ao governo do presidente
João Goulart, em nome das reformas de base, que defendia e que se
propunha realizar.
Mas o povo não foi convocado
ao proscênio. No impasse a que o
país chegara, as correntes políticas dividiam-se entre os que buscavam a saída batalhando pelas
reformas estruturais e os que,
amedrontados pela pressão social, levantavam as barragens para conter a correnteza cada vez
maior. Era preciso, segundo essas
lideranças de nossa elite demissionária, excluir o povo da cena
política. O golpe, que derrocou o
governo constitucional de João
Goulart, teve esse significado histórico. Tudo o mais são conclusões que, por si mesmas, não teriam forças para redefinir os rumos. Porque João Goulart optou
pelo combate aos privilégios e pela iniciativa das reformas de base,
ele não tinha lugar no cenário da
conjuntura. Sobrava-lhe a dimensão da história e ele a aceitou com
indisfarçável grandeza.
Na sessão solene do Congresso,
a 5 de dezembro de 1996, em homenagem a João Goulart, ao ensejo do 20º aniversário de seu falecimento, o presidente José Sarney
disse breves palavras que merecem ser lembradas: "O país guarda hoje, liberto das suas circunstâncias, a figura do presidente
João Goulart como de um homem que teve as virtudes da paciência, da pacificação, jamais
aceitando os apelos e as tentações
da violência para que o país não se
manchasse pelo sangue, através
de uma divisão de que ele não
queria jamais ser protagonista".
O tempo continua passando.
Mas o nome do presidente João
Goulart, ainda apagado pelo silêncio, merece que a História o recupere e o país lhe redescubra o
significado de sua vida.
Almino Affonso é advogado. Foi deputado federal (de 1959 a 1964, pelo PTB-AM; de 1995 a 1999, pelo PSDB-SP), ministro do Trabalho e da Previdência Social (no governo João Goulart) e vice-governador de São Paulo (de 1986 a 1990).É conselheiro da República.
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