São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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Jango, 40 anos depois

ALMINO AFFONSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Passados 40 anos do golpe de Estado de 1964, é hora de abrir espaço à figura do presidente João Goulart, em termos humanos e históricos, superando a intolerância com que ainda lhe envolvem o nome e que impede revê-lo sem as maldições de seus adversários.
Parece incrível que o Chile possa reencontrar-se com a imagem do presidente Salvador Allende, analisando-lhe o significado histórico, enquanto entre nós, João Goulart, morto há 28 anos, continua sendo o proscrito.
Alguns fatos precisam ser relembrados, como introdução à análise histórica daqueles anos tumultuados que antecedem a ruptura da ordem constitucional.
Desde logo, importa assinalar uma verdade fundamental: com a renúncia de Jânio Quadros e o veto aposto pelos chefes militares à posse do vice-presidente João Goulart, o país entrou em profunda crise institucional da qual emergiu graças à intervenção do Rio Grande do Sul, de armas na mão, sob a liderança do então governador Leonel Brizola e do general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, bem como do governador Mauro Borges, que também levantara Goiás em pé de guerra.
Como solução de emergência, o Congresso, através do chamado Ato Adicional, instituiu o sistema parlamentar de governo. Permitia a João Goulart assumir a chefia do Estado; mas os poderes de "governar" passavam a ser prerrogativa do primeiro-ministro, vale dizer de Tancredo Neves.
O governo, que assim se constituíra, fora um esbulho. A rigor, fora um "golpe branco", se quisermos revê-lo à luz da Constituição de 1946. Mas, apesar da coalizão política que, nos primeiros meses, incluía a própria UDN, a conspiração de civis e militares ressurgiu de imediato, seja com o objetivo de consolidar o parlamentarismo, escamoteando a consulta plebiscitária, seja para consumar o golpe de Estado.
Nesse contexto, o "Sistema Parlamentar de Governo" se exauriu sem mais demora. Instaurado a 7 de setembro de 1961, com a posse de João Goulart, a 23 de janeiro de 1963 já cedia lugar à restauração presidencialista, por força de uma decisão plebiscitária, com o respaldo de 10 milhões de votos.
João Goulart assumiu a Presidência pressionado pelas limitações econômicas e pelas crescentes demandas sociais, que o próprio discurso do Partido Trabalhista Brasileiro ativava na cidade e no campo. É oportuno outra vez destacar a escassez de tempo de que dispôs João Goulart, já então em plena vigência do "presidencialismo": assumira a 23 de janeiro de 1963 e fora apeado do poder a 2 de abril de 1964. Portanto, sufocado nos limites de 1 ano, 2 meses e 10 dias! Custa crer, mas esse foi de fato o seu mandato.
Pode alguém, que não seja um escriba do golpismo, argüir contra João Goulart a incapacidade administrativa? Pois é hora, ao contrário, de ressaltar o quanto logrou fazer, enfrentando simultaneamente tantas questões! Com efeito, no âmbito político, através de uma legislação cada vez mais atenta aos interesses nacionais, o país erguia a fronte: lei n.º 4.117/ 62, que definia o Código Brasileiro de Comunicações; lei n.º 4.118/ 62, que fixou a política nacional de energia nuclear; além das proposições, na Mensagem ao Congresso Nacional, relativas à supressão do art. 141, parágrafo 16, da Constituição de 1946, que obrigava a indenização da terra desapropriada, pagando-a previamente e em dinheiro, o que estrangulava qualquer projeto de reforma agrária.
Ao longo de 1963, outras medidas foram propostas ou aprovadas: o decreto n.º 53.337/63, que instituía o monopólio de importação de petróleo; o Plano Nacional de Telecomunicações, vinculado à criação da Embratel; a cassação de todas as concessões de pesquisa e lavra de minérios que infringiam as disposições do Código de Minas e da Constituição; sem esquecer a política externa independente, realizada com brilho por San Tiago Dantas.
Além desse registro sumário, é justo acrescentar alguns aspectos marcantes de João Goulart: consolidou a Petrobrás e implantou a Eletrobrás. Deu dimensão estratégica à questão da reforma agrária, assumindo-a como nenhum outro presidente, até então, ousara fazer. Ousou dizer "não" aos EUA, que se aprestavam a invadir Cuba. E resistiu aos apelos de uma guerra civil, quando lhe usurparam os poderes de presidente, na chamada "crise da legalidade".
Os pregoeiros do golpismo centravam fogo, sem trégua, no governo João Goulart, alegando que o presidente tramava a ruptura da ordem constitucional, que abria as portas institucionais aos avanços comunistas e deixava, por ação ou omissão, que a corrupção se encastelasse no Estado.
Os fatos se encarregaram de destruir essa montagem de falseadores. Onde estava a articulação do golpe atribuído a Goulart, a ele que foi destituído sem ter condições de desferir um só tiro de resistência? Nem logrou fazê-lo através das Forças Armadas (com as quais, portanto, não conspirava), nem muito menos valendo-se de redutos nos sindicatos urbanos, nas Ligas Camponesas, nem tampouco nos "Grupos dos 11", que se esgotavam na pregação ingênua de alguns poucos, sem um bodoque sequer?
Entrever no governo João Goulart (grande proprietário de terras no Rio Grande do Sul) a cumplicidade com a ascensão comunista chegava a ser ridículo. Mas não se pejavam de fazê-lo, até mesmo pela palavra do deputado Bilac Pinto, renomado jurista, que acusava o presidente de estar levando o país a uma "guerra de guerrilhas". Tanto absurdo, para quê? Para impedirem que prosperassem as reformas sociais, então chamadas "reformas de base", sobretudo a reforma agrária.
Bastava olhar as personalidades que compunham o ministério de João Goulart para constatar a distância entre o embuste da política menor e a grandeza de seus propósitos. Relembro alguns nomes, a título de exemplo: João Mangabeira, San Thiago Dantas, Teotônio Monteiro de Barros, Eliezer Batista, José Ermírio de Moraes, Celso Furtado, Carvalho Pinto, Paulo de Tarso dos Santos, Evandro Lins e Silva, Darcy Ribeiro, Oswaldo Lima Filho; em tudo semelhante ao que ocorrera na formação dos gabinetes parlamentaristas, engrandecidos pelas presenças de Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Franco Montoro, Brochado da Rocha, Gabriel Passos, além de outras figuras de renome. Haveria de ser com homens desse estofo, com a visão política que os caracterizava, que João Goulart se preparava para golpear as instituições e instaurar o regime comunista?
Da corrupção, com que procuraram enlameá-lo, basta ter presente a contundência de um fato: multiplicaram-se os Inquéritos Policiais Militares, vasculhando a vida de João Goulart, no afã de denegri-lo para sempre. Anos a fio de investigações com poderes absolutos! E se viram os vitoriosos do golpe, nos sucessivos governos militares, obrigados a engolir em seco as sentenças absolutórias.
Evoco o testemunho do senador Pedro Simon, em discurso no Congresso, por ocasião do 20º aniversário da morte de João Goulart. Dizia-nos o grande batalhador gaúcho que a revista "Time-Life" publicara que João Goulart, enriquecendo-se no poder, comprara fazendas e mais fazendas. O presidente, já então no exílio, ferido em sua honra, fora a um cartório, em Montevidéu, e outorgara procuração favorecendo o diretor-presidente da "Time-Life", que se adonaria, por US$ 1, de cada fazenda que houvesse em nome dele, de sua mulher ou de seus filhos, desde que adquiridas enquanto estivera na Presidência.
Apesar das falsidades haverem sido destroçadas pelos fatos, ainda hoje persistem indagações ferinas, numa crueldade que revolta porque agridem o homem público e são injustas com o cidadão; e, como se não bastasse, apagam-lhe com o silêncio a memória de seus merecimentos. De todo modo, supondo que o tempo já nos permite ter voz de ser ouvida, enfrento as crônicas apressadas e, arrolando fatos e argumentos, sinto-me à vontade para dizer que o presidente João Goulart honrou o mandato que lhe foi reiterado e merece, por isso mesmo, o respeito da posteridade.
Não faltam cientistas sociais que proclamam que João Goulart, por ver-se ao desamparo do apoio do povo, capitulou sem levantar a menor resistência às tropas insurgentes. É hora de enfrentar essa balela. Dos generais que abandonaram as trincheiras da ordem constitucional, prefiro não falar. Mas dizer-se, como ainda se afirma, que o povo deixou João Goulart ao desamparo, é falso.
Em 1989, o professor Antonio Lavareda, em estudo apresentado no 13º Encontro Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em Caxambu (MG), referiu-se a uma pesquisa do Ibope, que remonta a 1963 e 1964, com impressionantes dados sobre o alto índice de aprovação do governo Goulart, conforme reportagem de 12/ 1/1990, da revista "IstoÉ".
Na referida pesquisa, realizada entre os dias 9 e 26 de março de 1964, sendo ouvidas as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza e Curitiba, 72% dos entrevistados consideram necessária a realização de uma reforma agrária.
Na mesma pesquisa, indagara-se se João Goulart deveria apoiar um candidato à presidência nas eleições que se avizinhavam: 60% dos entrevistados responderam afirmativamente, numa clara demonstração do prestígio político do presidente.
E outra prova de sua popularidade, que se revela com maior clareza na pesquisa do Ibope, realizada cinco dias antes de o golpe de Estado ser assumido pelas lideranças civis e militares, é a seguinte: ao serem indagados os entrevistados sobre se votariam em João Goulart para presidente, supondo-se a hipótese de que, legalmente, lhe fosse possível candidatar-se, 47% disseram que sim.
A tendência da opinião pública -digo assim, já que a eleição só se realizaria em 1965- merece duas análises, que se complementam: um ano antes, em 1963, em pesquisa idêntica que o Ibope levara a cabo nas mesmas capitais, a resposta afirmativa fora de 37%. Portanto, longe de estar em declínio, o presidente João Goulart crescia na alma do povo.
A outra ponderação é de que -à época da pesquisa-, admitidas as candidaturas à Presidência de Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, que encarnavam os dois mais poderosos partidos políticos, em termos eleitorais (o PSD e a UDN), João Goulart se apresentava com uma preferência de quase 50% dos entrevistados.
Assim sendo, poderíamos enveredar por outras considerações, sobretudo no âmbito da conduta militar, recordando generais que o desampararam, mas não o povo, que lhe continuou a prestigiar com a confiança de sempre.
Passados 40 anos, considero legítimo afirmar que, se a crise institucional houvesse sido submetida a uma consulta plebiscitária, o povo a teria dirimido, dando respaldo ao governo do presidente João Goulart, em nome das reformas de base, que defendia e que se propunha realizar.
Mas o povo não foi convocado ao proscênio. No impasse a que o país chegara, as correntes políticas dividiam-se entre os que buscavam a saída batalhando pelas reformas estruturais e os que, amedrontados pela pressão social, levantavam as barragens para conter a correnteza cada vez maior. Era preciso, segundo essas lideranças de nossa elite demissionária, excluir o povo da cena política. O golpe, que derrocou o governo constitucional de João Goulart, teve esse significado histórico. Tudo o mais são conclusões que, por si mesmas, não teriam forças para redefinir os rumos. Porque João Goulart optou pelo combate aos privilégios e pela iniciativa das reformas de base, ele não tinha lugar no cenário da conjuntura. Sobrava-lhe a dimensão da história e ele a aceitou com indisfarçável grandeza.
Na sessão solene do Congresso, a 5 de dezembro de 1996, em homenagem a João Goulart, ao ensejo do 20º aniversário de seu falecimento, o presidente José Sarney disse breves palavras que merecem ser lembradas: "O país guarda hoje, liberto das suas circunstâncias, a figura do presidente João Goulart como de um homem que teve as virtudes da paciência, da pacificação, jamais aceitando os apelos e as tentações da violência para que o país não se manchasse pelo sangue, através de uma divisão de que ele não queria jamais ser protagonista".
O tempo continua passando. Mas o nome do presidente João Goulart, ainda apagado pelo silêncio, merece que a História o recupere e o país lhe redescubra o significado de sua vida.


Almino Affonso é advogado. Foi deputado federal (de 1959 a 1964, pelo PTB-AM; de 1995 a 1999, pelo PSDB-SP), ministro do Trabalho e da Previdência Social (no governo João Goulart) e vice-governador de São Paulo (de 1986 a 1990).É conselheiro da República.


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