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ENTREVISTA DA 2ª
Enviado do Vaticano se omitiu, afirma o presidente do Cimi
ARMANDO ANTENORE
PATRICIA ZORZAN
enviados especiais a Porto Seguro
Dom Franco Masserdotti, 58,
presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e bispo de
Balsas (MA), afirma que o cardeal
Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, "se omitiu" durante seu sermão na missa de 500
anos de evangelização ao vincular
o aparecimento da civilização
brasileira à chegada dos missionários portugueses.
"O espírito do Senhor já havia
semeado valores do Evangelho na
história dos povos indígenas.
Nesse ponto, o cardeal se omitiu."
Embora evite falar no assunto,
dom Masserdotti fez parte de um
grupo de pelo menos quatro bispos que, em repúdio ao confronto
entre índios e policiais militares
no dia 22, preferiu não participar
oficialmente da celebração presidida no dia 26 por Sodano, que é o
segundo homem na hierarquia da
Santa Sé.
Quatro dias antes da missa, em
um local próximo ao altar, o confronto resultou na prisão de 141
pessoas e em 30 feridos leves.
Constrangido pelos acontecimentos e sem os paramentos típicos da ocasião, dom Masserdotti
assistiu à missa da platéia, incógnito e distante do altar. "Posso
responder que todos os bispos rezaram em comunhão com os índios."
Leia a seguir os principais trechos de entrevista concedida na
sexta-feira.
Folha - O sr. foi à missa dos
500 anos?
Dom Franco Masserdotti - Prefiro deixar isso para lá. Posso responder que todos os bispos rezaram em comunhão com os índios. Todos viveram esse momento de oração. Mas alguns sentiram um pouco o constrangimento pelas circunstâncias difíceis do lugar. Pelo que ocorreu no
dia 22.
A presença das autoridades políticas, de não ter havido por parte
delas nenhum gesto de arrependimento ou de dizer que foi exagero, achei que seria constrangedor.
Folha - O sr. estava com os índios. O que ocorreu no dia 22?
Masserdotti - Houve a conferencia indígena e, dentro dela, um
grupo de caciques queria aceitar o
convite do presidente (Fernando
Henrique Cardoso) para participar da festa oficial do Descobrimento. A maioria não aceitou
porque já havia rechaçado essa
comemoração.
Acho que, se os índios tivessem
concordado em participar da festa oficial, não teria acontecido a
repressão. Se os índios tivessem
reagido e se a imprensa não estivesse lá, minha impressão é a de
que poderia ter havido um massacre. Nunca vi uma repressão dessa forma. Acho que perderam um
pouco a cabeça. A tropa de choque lançou bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, balas de borracha e jatos de
água. Os índios ficaram com medo e recuaram.
Os missionários que acompanhavam os índios, uns 30, ficaram
presos entre os soldados. Fui negociar com o coronel Müller (comandante da operação no local) e
acabei preso também. Ficamos
cinco horas cercados por soldados na estrada. Eles não dialogavam com a gente. Chegaram muitos políticos para negociar, e o coronel ofereceu que eu fosse para o
alojamento. Respondi que seriam
todos ou ninguém.
Folha - O sr. teve medo?
Masserdotti - Não. Sou cristão.
Vivenciei, como nunca na minha
vida, a Semana Santa. Porque
Deus me permitiu participar de
perto da Paixão de Jesus Cristo,
repetida na história desse povo.
Naquele dia senti dentro de
mim orgulho de poder estar lá e
de poder me solidarizar um pouco com aquele Cristo crucificado
e de sofrer um pouquinho, em
comparação ao sofrimento dos
índios. Vi a Paixão de Jesus e uma
luz de ressurreição na vontade deles de reconstruir a sociedade.
Folha - O sr. viu feridos?
Masserdotti - Vi feridos e outros apanhando de uma forma leve, com cassetetes. Não houve feridos graves, mas penso que (o
pior) foi o desprezo naquele dia.
Folha - O sr. acha que esse episódio espelha a relação do governo Fernando Henrique Cardoso com a causa indígena?
Masserdotti - Sim. Não há, me
parece, uma vontade política de
enfrentar o problema como deveria ser enfrentado. A Constituição
manda demarcar terras em cinco
anos -e a Carta é de 88. Já se passaram 12 anos e não se demarcou
nem a metade. Há ainda as terras
demarcadas e invadidas. O governo dá a impressão de ser um governo das elites econômicas e de
que ajuda os índios na medida em
que isso não prejudique o interesse maior dessas elites.
O dia 22 seguiu essa lógica. Em
toda a organização da festa, o governo não pensou que a nação
brasileira se compõe de várias raças: negros, brancos e índios. Todos eles deveriam ter o direito de
participar. Organizou-se a festa a
partir do ponto de vista do colonizador. O grande erro, e podemos
aplicar esse discurso também à
igreja, é pensar que a nação brasileira começou com a vinda dos
portugueses. Parece que a história
do Brasil começou em 1500 e que
antes só havia pré-história. Infelizmente, a história oficial é a dos
vencedores e não a dos vencidos.
Outra ambiguidade é fazer passar a idéia da harmonia racial.
Evitam projetar imagens de protestos, de contestações, para não
manchar a festa oficial. Para mim,
o Brasil que existe é o dos portugueses, dos negros, dos índios,
dos migrantes. Mas, como nação,
somos uma obra inacabada e que
não se fará enquanto houver desigualdade econômica e social.
Temos valores de uma cultura
brasileira, como a alegria do nosso povo, as nossas festas, a capacidade de olhar com otimismo para
a vida, os cantos, a música, a arte,
o jeitinho. Esses valores parecem
unir um pouco o nosso Brasil,
mas tudo isso não chega a poder
justificar a afirmação de que a nação brasileira está bem formada.
Folha - Mas o tom do sermão
do cardeal Angelo Sodano, durante a missa dos 500 anos, foi
de que o Evangelho trouxe a civilização ao Brasil.
Masserdotti - O fato de o Evangelho ter sido trazido pelos portugueses gerou valores interessantes, como a fraternidade, a filiação
divina, a dignidade da pessoa humana. Tudo isso foi uma contribuição positiva. Mas, do ponto de
vista da minha fé, o espírito do Senhor já havia semeado valores do
Evangelho, embora de forma implícita, na história dos povos indígenas, nos seus sofrimentos e em
suas tradições religiosas.
Quando chegaram os missionários, com a mentalidade daquela
época e a ausência da antropologia cultural -que ainda não havia nascido- , eles acharam que
isso era o demônio e destruíram
tudo. Mas agora temos condições
de dizer que naqueles valores já
estava presente o espírito do Senhor.
Folha - O cardeal errou?
Masserdotti - Ele realmente se
omitiu num ponto que não tem
nada de extraordinário, que hoje
já faz parte da doutrina da igreja
(a idéia de que já havia a semente
do Evangelho entre os povos indígenas americanos). Ele podia ter
valorizado mais esse ponto.
Folha - Como o sr. avaliou o
protesto do índio Matalauê na
missa dos 500 anos?
Masserdotti - Achei muito
oportuno e bonito, porque nasceu do coração dele. Foi o que deu
um tom mais autêntico e verdadeiro ao sacrifício da cruz. A intervenção sofrida dele deu o tom
certo à missa. Arrancou de nós as
lágrimas. Foi um protesto, mas
cheio de amor, de consciência da
própria dignidade.
Foi como dizer: "Vocês estão
aqui, mas devem pensar um pouco que estão aqui na nossa terra.
Por que vocês não assumem realmente a nossa causa? Não fiquem
somente pedindo perdão teoricamente. Concretizem o seu pedido
de perdão".
Folha - Falta à igreja concretizar esse pedido?
Masserdotti - A chegada dos
missionários trouxe coisas muito
bonitas, a alegria do encontro
com Jesus. Ao mesmo tempo
houve defeitos, pontos negativos.
Podemos dizer a mesma coisa
quanto ao presente. Ainda falta
muito para a igreja, mas devemos
reconhecer que passos foram dados. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) tenta
manter um diálogo crítico e construtivo com o governo, reivindicando as áreas indígenas e os direitos de todos os excluídos.
Há também as pastorais sociais
e o Cimi, que tem um merecimento muito grande na preservação
dos índios, no projeto de evangelização mais respeitoso da cultura
deles. Faremos o máximo para
tentar reparar um pouco aquele
mal, mas a igreja poderá merecer
o perdão dos índios na medida
em que se colocar radicalmente a
serviço deles e de todos os excluídos.
Folha - Como o sr. recebeu a
declaração do bispo de Eunápolis, dom José Edson Oliveira, pedindo desculpas ao cardeal pela
participação de Matalauê?
Masserdotti - Acho que havia
motivo para explicar (o que ocorreu) a uma pessoa que veio de fora. Mas não houve nenhuma
agressão ao cardeal. Houve um
grito que nos ajudou a contextualizar o sacrifício de Jesus.
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