São Paulo, segunda-feira, 01 de maio de 2000


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ENTREVISTA DA 2ª

Enviado do Vaticano se omitiu, afirma o presidente do Cimi


ARMANDO ANTENORE
PATRICIA ZORZAN
enviados especiais a Porto Seguro

Dom Franco Masserdotti, 58, presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e bispo de Balsas (MA), afirma que o cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, "se omitiu" durante seu sermão na missa de 500 anos de evangelização ao vincular o aparecimento da civilização brasileira à chegada dos missionários portugueses.
"O espírito do Senhor já havia semeado valores do Evangelho na história dos povos indígenas. Nesse ponto, o cardeal se omitiu."
Embora evite falar no assunto, dom Masserdotti fez parte de um grupo de pelo menos quatro bispos que, em repúdio ao confronto entre índios e policiais militares no dia 22, preferiu não participar oficialmente da celebração presidida no dia 26 por Sodano, que é o segundo homem na hierarquia da Santa Sé.
Quatro dias antes da missa, em um local próximo ao altar, o confronto resultou na prisão de 141 pessoas e em 30 feridos leves.
Constrangido pelos acontecimentos e sem os paramentos típicos da ocasião, dom Masserdotti assistiu à missa da platéia, incógnito e distante do altar. "Posso responder que todos os bispos rezaram em comunhão com os índios."
Leia a seguir os principais trechos de entrevista concedida na sexta-feira.

Folha - O sr. foi à missa dos 500 anos?
Dom Franco Masserdotti
- Prefiro deixar isso para lá. Posso responder que todos os bispos rezaram em comunhão com os índios. Todos viveram esse momento de oração. Mas alguns sentiram um pouco o constrangimento pelas circunstâncias difíceis do lugar. Pelo que ocorreu no dia 22.
A presença das autoridades políticas, de não ter havido por parte delas nenhum gesto de arrependimento ou de dizer que foi exagero, achei que seria constrangedor.

Folha - O sr. estava com os índios. O que ocorreu no dia 22?
Masserdotti
- Houve a conferencia indígena e, dentro dela, um grupo de caciques queria aceitar o convite do presidente (Fernando Henrique Cardoso) para participar da festa oficial do Descobrimento. A maioria não aceitou porque já havia rechaçado essa comemoração.
Acho que, se os índios tivessem concordado em participar da festa oficial, não teria acontecido a repressão. Se os índios tivessem reagido e se a imprensa não estivesse lá, minha impressão é a de que poderia ter havido um massacre. Nunca vi uma repressão dessa forma. Acho que perderam um pouco a cabeça. A tropa de choque lançou bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, balas de borracha e jatos de água. Os índios ficaram com medo e recuaram.
Os missionários que acompanhavam os índios, uns 30, ficaram presos entre os soldados. Fui negociar com o coronel Müller (comandante da operação no local) e acabei preso também. Ficamos cinco horas cercados por soldados na estrada. Eles não dialogavam com a gente. Chegaram muitos políticos para negociar, e o coronel ofereceu que eu fosse para o alojamento. Respondi que seriam todos ou ninguém.

Folha - O sr. teve medo?
Masserdotti
- Não. Sou cristão. Vivenciei, como nunca na minha vida, a Semana Santa. Porque Deus me permitiu participar de perto da Paixão de Jesus Cristo, repetida na história desse povo.
Naquele dia senti dentro de mim orgulho de poder estar lá e de poder me solidarizar um pouco com aquele Cristo crucificado e de sofrer um pouquinho, em comparação ao sofrimento dos índios. Vi a Paixão de Jesus e uma luz de ressurreição na vontade deles de reconstruir a sociedade.

Folha - O sr. viu feridos?
Masserdotti
- Vi feridos e outros apanhando de uma forma leve, com cassetetes. Não houve feridos graves, mas penso que (o pior) foi o desprezo naquele dia.

Folha - O sr. acha que esse episódio espelha a relação do governo Fernando Henrique Cardoso com a causa indígena?
Masserdotti
- Sim. Não há, me parece, uma vontade política de enfrentar o problema como deveria ser enfrentado. A Constituição manda demarcar terras em cinco anos -e a Carta é de 88. Já se passaram 12 anos e não se demarcou nem a metade. Há ainda as terras demarcadas e invadidas. O governo dá a impressão de ser um governo das elites econômicas e de que ajuda os índios na medida em que isso não prejudique o interesse maior dessas elites.
O dia 22 seguiu essa lógica. Em toda a organização da festa, o governo não pensou que a nação brasileira se compõe de várias raças: negros, brancos e índios. Todos eles deveriam ter o direito de participar. Organizou-se a festa a partir do ponto de vista do colonizador. O grande erro, e podemos aplicar esse discurso também à igreja, é pensar que a nação brasileira começou com a vinda dos portugueses. Parece que a história do Brasil começou em 1500 e que antes só havia pré-história. Infelizmente, a história oficial é a dos vencedores e não a dos vencidos.
Outra ambiguidade é fazer passar a idéia da harmonia racial. Evitam projetar imagens de protestos, de contestações, para não manchar a festa oficial. Para mim, o Brasil que existe é o dos portugueses, dos negros, dos índios, dos migrantes. Mas, como nação, somos uma obra inacabada e que não se fará enquanto houver desigualdade econômica e social.
Temos valores de uma cultura brasileira, como a alegria do nosso povo, as nossas festas, a capacidade de olhar com otimismo para a vida, os cantos, a música, a arte, o jeitinho. Esses valores parecem unir um pouco o nosso Brasil, mas tudo isso não chega a poder justificar a afirmação de que a nação brasileira está bem formada.

Folha - Mas o tom do sermão do cardeal Angelo Sodano, durante a missa dos 500 anos, foi de que o Evangelho trouxe a civilização ao Brasil.
Masserdotti
- O fato de o Evangelho ter sido trazido pelos portugueses gerou valores interessantes, como a fraternidade, a filiação divina, a dignidade da pessoa humana. Tudo isso foi uma contribuição positiva. Mas, do ponto de vista da minha fé, o espírito do Senhor já havia semeado valores do Evangelho, embora de forma implícita, na história dos povos indígenas, nos seus sofrimentos e em suas tradições religiosas.
Quando chegaram os missionários, com a mentalidade daquela época e a ausência da antropologia cultural -que ainda não havia nascido- , eles acharam que isso era o demônio e destruíram tudo. Mas agora temos condições de dizer que naqueles valores já estava presente o espírito do Senhor.

Folha - O cardeal errou?
Masserdotti
- Ele realmente se omitiu num ponto que não tem nada de extraordinário, que hoje já faz parte da doutrina da igreja (a idéia de que já havia a semente do Evangelho entre os povos indígenas americanos). Ele podia ter valorizado mais esse ponto.

Folha - Como o sr. avaliou o protesto do índio Matalauê na missa dos 500 anos?
Masserdotti
- Achei muito oportuno e bonito, porque nasceu do coração dele. Foi o que deu um tom mais autêntico e verdadeiro ao sacrifício da cruz. A intervenção sofrida dele deu o tom certo à missa. Arrancou de nós as lágrimas. Foi um protesto, mas cheio de amor, de consciência da própria dignidade.
Foi como dizer: "Vocês estão aqui, mas devem pensar um pouco que estão aqui na nossa terra. Por que vocês não assumem realmente a nossa causa? Não fiquem somente pedindo perdão teoricamente. Concretizem o seu pedido de perdão".

Folha - Falta à igreja concretizar esse pedido?
Masserdotti
- A chegada dos missionários trouxe coisas muito bonitas, a alegria do encontro com Jesus. Ao mesmo tempo houve defeitos, pontos negativos. Podemos dizer a mesma coisa quanto ao presente. Ainda falta muito para a igreja, mas devemos reconhecer que passos foram dados. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) tenta manter um diálogo crítico e construtivo com o governo, reivindicando as áreas indígenas e os direitos de todos os excluídos.
Há também as pastorais sociais e o Cimi, que tem um merecimento muito grande na preservação dos índios, no projeto de evangelização mais respeitoso da cultura deles. Faremos o máximo para tentar reparar um pouco aquele mal, mas a igreja poderá merecer o perdão dos índios na medida em que se colocar radicalmente a serviço deles e de todos os excluídos.

Folha - Como o sr. recebeu a declaração do bispo de Eunápolis, dom José Edson Oliveira, pedindo desculpas ao cardeal pela participação de Matalauê?
Masserdotti
- Acho que havia motivo para explicar (o que ocorreu) a uma pessoa que veio de fora. Mas não houve nenhuma agressão ao cardeal. Houve um grito que nos ajudou a contextualizar o sacrifício de Jesus.


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