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NO PLANALTO
O silêncio do Exército diz muito sobre o Araguaia
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Decorridos 30 anos, o
Exército ainda trata a
guerrilha do Araguaia como um
episódio que não aconteceu.
Presta, inconscientemente, um
inestimável serviço à historiografia nacional. Há virtude no
silêncio do Exército.
Costuma-se dizer que a história pertence aos vitoriosos. Nem
sempre. Embora tenha esmigalhado os guerrilheiros que foram
à sorte das armas na selva amazônica entre 72 e 74, o Exército
que vai se cristalizando nos livros e nas páginas dos jornais
tem a cara da derrota.
Se quisesse, o Exército poderia
investir contra o verbete da enciclopédia e o noticiário. Mas, em
vez de subir no caixote para fazer barulho em torno do próprio
triunfo, o Exército opta pelo silêncio. Convém dar ouvidos a
esse silêncio.
Só os surdos não conseguem
ouvir a eloqüência da mudez do
Exército. Apurando-se os tímpanos, é fácil escutar, em alto e
bom som, o comunicado embutido na ausência de manifestação. As palavras não-ditas pelo
Exército gritam que a guerrilha
foi vencida sem método.
Escrito de outra maneira: o
Exército chegou à vitória por
meios que não justificam os fins.
Empregou táticas que não dignificam a farda. Recorreu a práticas das quais não pode se vangloriar do alto do caixote, em
praça pública.
Certos militares da velha-guarda afirmam, com alguma
dose de razão, que a demolição
do Muro de Berlim serviu para
comprovar o despautério da
ideologia que levou o PC do B às
armas. Dizem, de resto, que o comunismo à Albânia não foi à
selva a passeio.
Na concepção dos veteranos
do Exército, a esquerda armou-se para o tudo ou nada. Não hesitou, por exemplo, em eliminar
a sangue frio colonos suspeitos
de dedurar guerrilheiros.
São argumentos que, nos diálogos com o travesseiro, funcionam como lenitivo das consciências pesadas. Para o debate público, porém, são inservíveis.
Soaria estranha qualquer lógica
que, longe da fronha, tentasse
invocar a selvageria da "subversão" para justificar a selvageria
da repressão.
Impossível aceitar a tese de
que, para frear o que considerava inadmissível, o Exército teve
de recorrer ao inaceitável. O
Exército é a pátria de farda, custeada com o dinheiro dos impostos. Autorizá-lo a torturar e dar
sumiço em compatriotas equivale a transformar todo cidadão
em dia com o fisco num cúmplice da barbárie.
Assim, o país não pode desperdiçar a oportunidade de desfrutar da quietude dos militares.
Há utilidade no silêncio do
Exército. Facilita, por exemplo,
a audição dos pequenos rumores. Ruídos como esses que a Folha amplifica em sua edição deste domingo.
Muito já foi dito acerca das
atrocidades cometidas pelo
Exército nos combates do Araguaia. Mas nada soou tão desconcertante quanto os depoimentos dos 36 soldados que se
dispuseram a contar a experiência do dia-a-dia das bases militares incrustadas nas matas da
Amazônia.
São testemunhos chocantes.
São relatos de uma rotina de humilhações, espancamentos, descargas de choques elétricos, fuzilamentos e decapitações. É o espelho de um passado que se recusa a passar. São vestígios de uma
história que tem início e meio,
mas não tem fim.
A cada nova revelação sobre o
Araguaia, o desaparecimento da
voz do Exército brada mais alto.
Alardeia que a história escondida nos arquivos oficiais lacrados
transporta o Brasil da era moderna para algum ponto obscuro
da era pré-histórica.
Há compaixão no silêncio do
Exército. É graças a ele que os 61
desaparecidos políticos do Araguaia ainda não desapareceram. Sobrevivem no inconformismo de viúvas, mães e parentes privados do sacrossanto direito de resgatar punhados de
ossos sobre os quais possam derramar lágrimas e depositar flores no Dia de Finados.
Agora, mais do que nunca, entende-se a profunda grandeza
das respostas que o Exército vem
calando há três décadas. A mensagem invisível do Exército, expressada no silêncio de resmas
de papel em branco, é a de que
remoer o passado significa trazer à tona um Brasil inconveniente.
Há sabedoria no silêncio do
Exército. Sem ele, a nação teria
de conviver com o escândalo do
abandono de cadáveres na selva.
Teria de enfrentar o escárnio do
lançamento de corpos no oceano. Teria de encarar a vergonha
do arremesso de esqueletos na
Serra das Andorinhas.
Se o velho Luiz Inácio houvesse
assumido a Presidência da República, decerto já teria "levantado o traseiro da cadeira" para
dar um basta ao silêncio do
Exército. Por sorte, quem se
apossou do Palácio do Planalto
foi um outro Lula da Silva, tomado por um "comodismo" que
possibilita ao Exército continuar
fingindo que os anos de 72 a 74
não aconteceram.
Há higiene no silêncio do Exército. Ao exercitar a mania deletéria de espiar pela fechadura da
história, jornalistas e historiadores remoem o lixo. Não há do outro lado senão detritos de um
passado sem heróis. Um passado
que, por malcheiroso, talvez não
seja digno de reciclagem.
Viva o silêncio do Exército, a
cada dia mais ensurdecedor.
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