São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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NO PLANALTO

O silêncio do Exército diz muito sobre o Araguaia

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Decorridos 30 anos, o Exército ainda trata a guerrilha do Araguaia como um episódio que não aconteceu. Presta, inconscientemente, um inestimável serviço à historiografia nacional. Há virtude no silêncio do Exército.
Costuma-se dizer que a história pertence aos vitoriosos. Nem sempre. Embora tenha esmigalhado os guerrilheiros que foram à sorte das armas na selva amazônica entre 72 e 74, o Exército que vai se cristalizando nos livros e nas páginas dos jornais tem a cara da derrota.
Se quisesse, o Exército poderia investir contra o verbete da enciclopédia e o noticiário. Mas, em vez de subir no caixote para fazer barulho em torno do próprio triunfo, o Exército opta pelo silêncio. Convém dar ouvidos a esse silêncio.
Só os surdos não conseguem ouvir a eloqüência da mudez do Exército. Apurando-se os tímpanos, é fácil escutar, em alto e bom som, o comunicado embutido na ausência de manifestação. As palavras não-ditas pelo Exército gritam que a guerrilha foi vencida sem método.
Escrito de outra maneira: o Exército chegou à vitória por meios que não justificam os fins. Empregou táticas que não dignificam a farda. Recorreu a práticas das quais não pode se vangloriar do alto do caixote, em praça pública.
Certos militares da velha-guarda afirmam, com alguma dose de razão, que a demolição do Muro de Berlim serviu para comprovar o despautério da ideologia que levou o PC do B às armas. Dizem, de resto, que o comunismo à Albânia não foi à selva a passeio.
Na concepção dos veteranos do Exército, a esquerda armou-se para o tudo ou nada. Não hesitou, por exemplo, em eliminar a sangue frio colonos suspeitos de dedurar guerrilheiros.
São argumentos que, nos diálogos com o travesseiro, funcionam como lenitivo das consciências pesadas. Para o debate público, porém, são inservíveis. Soaria estranha qualquer lógica que, longe da fronha, tentasse invocar a selvageria da "subversão" para justificar a selvageria da repressão.
Impossível aceitar a tese de que, para frear o que considerava inadmissível, o Exército teve de recorrer ao inaceitável. O Exército é a pátria de farda, custeada com o dinheiro dos impostos. Autorizá-lo a torturar e dar sumiço em compatriotas equivale a transformar todo cidadão em dia com o fisco num cúmplice da barbárie.
Assim, o país não pode desperdiçar a oportunidade de desfrutar da quietude dos militares. Há utilidade no silêncio do Exército. Facilita, por exemplo, a audição dos pequenos rumores. Ruídos como esses que a Folha amplifica em sua edição deste domingo.
Muito já foi dito acerca das atrocidades cometidas pelo Exército nos combates do Araguaia. Mas nada soou tão desconcertante quanto os depoimentos dos 36 soldados que se dispuseram a contar a experiência do dia-a-dia das bases militares incrustadas nas matas da Amazônia.
São testemunhos chocantes. São relatos de uma rotina de humilhações, espancamentos, descargas de choques elétricos, fuzilamentos e decapitações. É o espelho de um passado que se recusa a passar. São vestígios de uma história que tem início e meio, mas não tem fim.
A cada nova revelação sobre o Araguaia, o desaparecimento da voz do Exército brada mais alto. Alardeia que a história escondida nos arquivos oficiais lacrados transporta o Brasil da era moderna para algum ponto obscuro da era pré-histórica.
Há compaixão no silêncio do Exército. É graças a ele que os 61 desaparecidos políticos do Araguaia ainda não desapareceram. Sobrevivem no inconformismo de viúvas, mães e parentes privados do sacrossanto direito de resgatar punhados de ossos sobre os quais possam derramar lágrimas e depositar flores no Dia de Finados.
Agora, mais do que nunca, entende-se a profunda grandeza das respostas que o Exército vem calando há três décadas. A mensagem invisível do Exército, expressada no silêncio de resmas de papel em branco, é a de que remoer o passado significa trazer à tona um Brasil inconveniente.
Há sabedoria no silêncio do Exército. Sem ele, a nação teria de conviver com o escândalo do abandono de cadáveres na selva. Teria de enfrentar o escárnio do lançamento de corpos no oceano. Teria de encarar a vergonha do arremesso de esqueletos na Serra das Andorinhas.
Se o velho Luiz Inácio houvesse assumido a Presidência da República, decerto já teria "levantado o traseiro da cadeira" para dar um basta ao silêncio do Exército. Por sorte, quem se apossou do Palácio do Planalto foi um outro Lula da Silva, tomado por um "comodismo" que possibilita ao Exército continuar fingindo que os anos de 72 a 74 não aconteceram.
Há higiene no silêncio do Exército. Ao exercitar a mania deletéria de espiar pela fechadura da história, jornalistas e historiadores remoem o lixo. Não há do outro lado senão detritos de um passado sem heróis. Um passado que, por malcheiroso, talvez não seja digno de reciclagem.
Viva o silêncio do Exército, a cada dia mais ensurdecedor.


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