São Paulo, quarta, 1 de julho de 1998

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ELIO GASPARI
O general Videla deve ser lembrado

Uma modesta placa de bronze colocada em 1980 na praça Argentina, em Porto Alegre, permitiu ao prefeito petista da cidade, Raul Pont, uma demonstração de serenidade e sofisticação cultural que deveria levar tanto seus correligionários quanto seus adversários a refletir sobre a monotonia do mundo em preto e branco.
Em 1980, o ditador argentino Jorge Rafael Videla visitou a cidade em companhia do presidente João Baptista Figueiredo. Os bajuladores da ocasião inventaram uma pequena cerimônia destinada a gravar o evento na história de Porto Alegre. Agora que o governo Videla perdeu a pompa e dele restaram só os crimes, quiseram expurgar a placa, mas a prefeitura decidiu deixá-la lá, como parte do patrimônio histórico da cidade.
A magra figura do general Videla, caso clássico de mediocridade escondida na circunspecção, governou a Argentina de 1976 a 1981. Antes de assumir (no quepe de um golpe militar) ele dizia que o restabelecimento da ordem política custaria caro ao seu país: "Morrerão todas as pessoas necessárias para que volte a reinar a paz". Quando deixou o poder (na bota de outro golpe), haviam morrido 20 mil pessoas.
"Saldo natural de uma guerra", dizia o general, repetindo a patranha segundo a qual a violência do terrorismo de esquerda justificava a criminalização do Estado e de uma parte da oficialidade das Forças Armadas. Seu governo assassinava adversários drogando-os, embarcando-os em aviões e atirando-os ao mar, aos lotes. O funcionamento dessa burocracia está magnificamente contada no livro "O Vôo", do jornalista Horacio Verbitsky. A máquina de crimes da ditadura argentina matou, torturou e roubou numa escala africana. (Por justiça, registre-se que Videla não tocou num só palito de fósforos.)
O general foi levado a julgamento em 1985. Condenado a prisão perpétua, viu-se indultado em 1990 pelo presidente Carlos Menem. Despido da patente militar, está novamente encrencado, por conta da investigação do sequestro de cinco bebês, filhos de prisioneiras que eram assassinadas depois de parir. Acabou num camburão, guardado numa cela de penitenciária. Se tiver a prisão preventiva decretada, arrisca passar o seu 73º aniversário na cadeia.
Enquanto se fez justiça em Buenos Aires, pretendeu-se arrombar uma porta aberta em Porto Alegre. A placa em homenagem a Videla deve ser preservada, como um monumento a uma época em que as ditaduras argentina e brasileira mantinham uma rede de mercoassassinatos. A Itália não derrubou os monumentos do fascismo nem os cristãos demoliram o Coliseu. Em Florença, quando o povo derrubou a tirania do duque de Atenas, passaram cal nos afrescos de uma sala onde ia contada sua vida. Anos depois a pintura foi restaurada, deixando-se apenas um retângulo encoberto, como recordação do desdém do povo daquela cidade pelos ditadores.
Uma das supremas demonstrações de civilidade da política brasileira foi a mudança de nome da praça da Constituição, no Rio de Janeiro, feita depois da proclamação da República. Seria um crime incomodar a bela estátua francesa de d. Pedro 1º. Foi um lance de grande humor rebatizar a praça que a hospeda, dando-lhe o nome de Tiradentes. Assim, o neto de d. Maria (a Louca), foi condenado a viver na praça do alferes sem rosto que a avó mandara enforcar e esquartejar a poucos quarteirões de distância.
Se houve uma época em que o presidente brasileiro achou razoável marcar em bronze a passagem de um assassino por Porto Alegre, nenhuma outra ocasião tem o direito de apagar essa memória. Pode ser um pouco constrangedor deixar a placa do Videla na praça Argentina, pois o país que infortunou talvez não deva ser associado a sua figura. Nesse caso, quem sabe, pode ser razoável tirar a placa de lá, colocando-a em outro lugar, ao qual se dê o nome de praça dos Desaparecidos. Assim, os poderosos da ocasião, como o d. Pedro da praça Tiradentes, ficam condenados a viver na companhia daquelas pessoas que durante os tristes períodos da história parecem não ter razão, destino ou direitos. Nisso tudo, o que importa é que o general Jorge Rafael Videla seja lembrado.



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