|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ELIO GASPARI
O general Videla deve ser lembrado
Uma modesta placa de bronze colocada em 1980 na praça
Argentina, em Porto Alegre,
permitiu ao prefeito petista da
cidade, Raul Pont, uma demonstração de serenidade e sofisticação cultural que deveria
levar tanto seus correligionários quanto seus adversários a
refletir sobre a monotonia do
mundo em preto e branco.
Em 1980, o ditador argentino
Jorge Rafael Videla visitou a
cidade em companhia do presidente João Baptista Figueiredo.
Os bajuladores da ocasião inventaram uma pequena cerimônia destinada a gravar o
evento na história de Porto
Alegre. Agora que o governo
Videla perdeu a pompa e dele
restaram só os crimes, quiseram expurgar a placa, mas a
prefeitura decidiu deixá-la lá,
como parte do patrimônio histórico da cidade.
A magra figura do general
Videla, caso clássico de mediocridade escondida na circunspecção, governou a Argentina
de 1976 a 1981. Antes de assumir (no quepe de um golpe militar) ele dizia que o restabelecimento da ordem política custaria caro ao seu país: "Morrerão todas as pessoas necessárias para que volte a reinar a
paz". Quando deixou o poder
(na bota de outro golpe), haviam morrido 20 mil pessoas.
"Saldo natural de uma guerra", dizia o general, repetindo
a patranha segundo a qual a
violência do terrorismo de esquerda justificava a criminalização do Estado e de uma parte da oficialidade das Forças
Armadas. Seu governo assassinava adversários drogando-os,
embarcando-os em aviões e
atirando-os ao mar, aos lotes.
O funcionamento dessa burocracia está magnificamente
contada no livro "O Vôo", do
jornalista Horacio Verbitsky. A
máquina de crimes da ditadura argentina matou, torturou e
roubou numa escala africana.
(Por justiça, registre-se que Videla não tocou num só palito
de fósforos.)
O general foi levado a julgamento em 1985. Condenado a
prisão perpétua, viu-se indultado em 1990 pelo presidente
Carlos Menem. Despido da patente militar, está novamente
encrencado, por conta da investigação do sequestro de cinco bebês, filhos de prisioneiras
que eram assassinadas depois
de parir. Acabou num camburão, guardado numa cela de
penitenciária. Se tiver a prisão
preventiva decretada, arrisca
passar o seu 73º aniversário na
cadeia.
Enquanto se fez justiça em
Buenos Aires, pretendeu-se arrombar uma porta aberta em
Porto Alegre. A placa em homenagem a Videla deve ser
preservada, como um monumento a uma época em que as
ditaduras argentina e brasileira mantinham uma rede de
mercoassassinatos. A Itália
não derrubou os monumentos
do fascismo nem os cristãos demoliram o Coliseu. Em Florença, quando o povo derrubou a
tirania do duque de Atenas,
passaram cal nos afrescos de
uma sala onde ia contada sua
vida. Anos depois a pintura foi
restaurada, deixando-se apenas um retângulo encoberto,
como recordação do desdém do
povo daquela cidade pelos ditadores.
Uma das supremas demonstrações de civilidade da política brasileira foi a mudança de
nome da praça da Constituição, no Rio de Janeiro, feita
depois da proclamação da República. Seria um crime incomodar a bela estátua francesa
de d. Pedro 1º. Foi um lance de
grande humor rebatizar a praça que a hospeda, dando-lhe o
nome de Tiradentes. Assim, o
neto de d. Maria (a Louca), foi
condenado a viver na praça do
alferes sem rosto que a avó
mandara enforcar e esquartejar a poucos quarteirões de distância.
Se houve uma época em que o
presidente brasileiro achou razoável marcar em bronze a
passagem de um assassino por
Porto Alegre, nenhuma outra
ocasião tem o direito de apagar
essa memória. Pode ser um
pouco constrangedor deixar a
placa do Videla na praça Argentina, pois o país que infortunou talvez não deva ser associado a sua figura. Nesse caso,
quem sabe, pode ser razoável
tirar a placa de lá, colocando-a
em outro lugar, ao qual se dê o
nome de praça dos Desaparecidos. Assim, os poderosos da
ocasião, como o d. Pedro da
praça Tiradentes, ficam condenados a viver na companhia
daquelas pessoas que durante
os tristes períodos da história
parecem não ter razão, destino
ou direitos. Nisso tudo, o que
importa é que o general Jorge
Rafael Videla seja lembrado.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|