São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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ELIO GASPARI

Os plebiscitos da CNBB

Não faz o seu estilo, mas o episcopado brasileiro bem que poderia dizer até que ponto ele está representado nas manifestações plebiscitárias que se organizam em nome da CNBB. Trata-se de rematado ilusionismo, fronteiriço da má-fé.
Há poucos anos, em nome dos bispos, organizou-se um plebiscito para saber o que os brasileiros achavam do resgate da dívida externa. Votaram 6 milhões de pessoas. Agora, o Grito dos Excluídos está organizando outro plebiscito, sobre a Alca. Mandaram imprimir 20 milhões de cédulas. Estimando que todas sejam usadas, a turma do grito já decidiu excluir algo como 100 milhões de almas. Mesmo que fosse para fingir, o teatrinho custaria um desperdício de pelo menos 80 milhões de cédulas, e os organizadores do evento não são de queimar dinheiro.
Resta saber se há no Brasil um só bispo capaz de sustentar que é superior a 1 milhão o número de pessoas capazes de dizer, com um grau razoável de conhecimento, que sabe o que é a Alca.
Esses plebiscitos são manifestações meramente propagandísticas e patrulheiras. Destinam-se a perguntar a quem não quer pagar a dívida externa nem negociar a Alca o que acham do pagamento da dívida externa e da negociação da Alca. Seria muito mais instrutivo se o episcopado organizasse um outro tipo de plebiscito, sem dúvida mais representativo. Poderiam consultar todos os padres. Se dá muito trabalho, poderiam submeter os bispos ao mesmo "sim" ou "não" que pretendem oferecer aos fiéis. Se também dá trabalho, poderiam ouvir os sete cardeais. Depois, conversariam sobre uma maneira de ouvir o rebanho.

Um artista do povo, preservado pelo povo

Em 1983, quando o pintor de paredes aposentado Guido Poianas morreu, aos 70 anos, o Museu de Arte de Santo André começou a agrupar os quadros que ele havia deixado. Dois foram achados numa oficina de consertos de geladeiras, onde estavam pendurados desde que ele os deixara em pagamento por um serviço. Seus amigos da cidade trouxeram telas que ele lhes havia presenteado. A viúva, Núbia, doou quase todas as obras que tinha em casa. Eram paisagens urbanas, cheias de luz, vazias de gente. Graças a esse fino espírito de valorização da arte, a comunidade de Santo André preservou a memória e a obra de um dos grandes pintores brasileiros de seu tempo. No dia 13, no seu salão de exposições, a prefeitura do município mostrará 53 trabalhos de Poianas.
Esse é um caso daqueles que se acredita que só acontece em outras terras. Guido Poianas foi pintor a vida toda, mas sobreviveu pintando paredes. Além delas, entre 1930 e 1980 deve ter pintado algo como 500 quadros. José Armando Pereira da Silva, um dos responsáveis pela preservação de sua obra e memória, acredita que Guido jamais tenha vendido um quadro por mais de R$ 500 em dinheiro de hoje. A maior parte deu de presente. Sobrevivem uns cem, entre eles três painéis pintados no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André.
Filho de um agitador sindical, Poianas nasceu na Itália e chegou ao Brasil em 1924. Militava no Partido Comunista, no sindicato da construção civil e teve uma breve experiência com a vanguarda artística nos anos 60, quando pintou alguns cenários para o grupo Teatro da Cidade, dirigido por Heleny Guariba. Mesmo assim, era apenas um pintor de cenários. Figurativo numa época abstrata, municipal numa arte federal, Poianas estudara na Escola Profissional do Brás. Seus esboços mostram que era um meticuloso observador das regras da perspectiva e, se as suas paisagens parecem ingênuas, havia nelas um calculado estudo.
Há em Poianas uma claridade que lembra alguns dos grandes pintores americanos do século passado. Seu "Primeiro de Maio" é uma jóia. Foi certamente o único pintor a botar esse título num quadro onde, numa enorme rua, há apenas cinco pessoas, três das quais esperando o ônibus. Quando um amigo perguntou-lhe onde estava a massa trabalhadora, ele respondeu que o pessoal já tinha ido para casa e devia estar almoçando.
Como nem todo mundo pode ir a Santo André (e esse talvez tenha sido o grande problema de Poianas), resta um atalho. A prefeitura da cidade publicou um bem cuidado catalogo com 61 reproduções de seus trabalhos. São mil cópias, destinadas a bibliotecas e museus.

Queixe-se ao FMI. Ao menos ele responde

Desde janeiro de 2000, o Sindicato Nacional de Auditores Fiscais mandou 29 ofícios ao secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Recebeu três respostas.
Há pouco mais de um mês, oito auditores escreveram, em caráter pessoal, ao diretor-geral do FMI, Horst Köhler pedindo sua atenção para o mau estado da máquina arrecadadora de impostos brasileira.
Receberam uma resposta formal, porém elegante e específica, assinada pela chefe interina da divisão de assuntos públicos do Fundo. Ela agradece aos auditores o envio da correspondência e o interesse que eles demonstraram no aprimoramento da Secretaria da Receita. Informa que o FMI continuará a apoiar iniciativas destinadas a modernizar a máquina da arrecadação e aplaudiu o trabalho de todos os funcionários da Receita pelos avanços conseguidos pela instituição. Pode não ser muita coisa, mas, reclamando ao FMI, ouve-se uma resposta educada.

Segundo turno

Naqueles dez minutos de conversa a sós que FFHH teve com Lula há duas semanas, ele lhe disse, com todas as letras: não sei se o ajuda ou não, mas conte comigo se o seu adversário no segundo turno for Ciro Gomes.
Se algo parecido com essa aliança vier a acontecer, Lula e FFHH haverão de se reencontrar exatamente 20 anos depois da eleição de 1982, quando correram juntos para eleger senador o professor e tomaram monumental surra do inesquecível Franco Montoro.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e acredita em tudo o que o governo diz. Acredita que o Brasil tem rumo, que a modernidade é uma alvorada e que o mundo vive um novo Renascimento. O idiota ficou na maior alegria ao saber que o doutor Armínio Fraga estima um crescimento de 1% para a economia em 2002.
Por idiota, ele calculou o desempenho da economia nos oito anos de duração do mandarinato de FFHH. Resultou um crescimento médio do PIB de 2,25% e um incremento da renda per capita de 0,88% ao ano.
Eremildo foi comparar esses números com os da "década perdida". Nos anos 80, o PIB cresceu 3,02%, e a renda per capita aumentou 0,72% ao ano.
O idiota procurou um período de oito anos tão ruinoso quanto o de agora. Achou os anos que vão de 1987 a 1994, com 1,69% de crescimento do PIB e 0,06% da renda. Concluiu que, depois de oito anos de ruína, tudo mudou e FFHH deu um rumo aos brasileiros: mais oito anos de ruína.

Cabeças blindadas

Todos os candidatos a presidente estão preocupados com a questão da segurança pública. Pois vale que prestem atenção à seguinte gracinha:
O governo federal determinou que todo cidadão interessado em ser proprietário de um carro blindado deve se registrar na polícia para receber um cartão que legaliza sua proteção.
O sujeito paga impostos, o Estado não lhe dá segurança para ir e vir de casa para o trabalho. Protegendo-se, ele resolve blindar seu carro. Um Marea com blindagem elementar, zerinho, custa em torno de R$ 100 mil. Depois disso, deve ir à polícia, para regularizar a blindagem. Deverá preencher um formulário informando ao pessoal seu nome, endereço, telefone e CPF. Para quê, ninguém sabe.
Sabe-se menos ainda por que esse cadastro, caso deva existir, não fica na mão do Exército, no qual os fabricantes de blindados já são obrigados a se registrar.
Em tempo: a bandidagem está isenta de todas essas formalidades burocráticas.

ENTREVISTA

Sara Walker

(62 anos, presidente do Colégio Americano de Médicos e da Sociedade Americana de Medicina Geral)

-O que a senhora recomenda a um paciente para que julgue um médico que o vê pela primeira vez?
-A primeira coisa que ele precisa saber é se o médico tem alguma familiaridade com o problema que lhe vai expor. Leia a tabuleta, não leve problemas cardíacos a um dermatologista. Depois, precisa avaliar a atenção que o médico lhe dá. Olhar no olho, estar interessado em ouvir o que o paciente tem a dizer. O médico não deve parecer apressado. O primeiro contato deve incluir um exame físico. É muito difícil que um médico consiga fazer a primeira consulta em menos de meia hora. Se o caso for de alguma complexidade, essa conversa pode durar até uma hora. No desdobramento da relação, o paciente deve avaliar a disponibilidade do médico. Ele o atende ao telefone, liga de volta? O mais importante: o paciente deve estar pronto para reclamar do médico. Infelizmente os pacientes são tímidos, e os médicos muitas vezes são intimidantes. Quando o paciente se inibe, a relação dos dois é prejudicada. É melhor ele se queixar ao médico do que ficar falando mal dele para os outros.
-Os médicos brasileiros vivem numa situação difícil. Na rede pública, ganham salários insuficientes. Na rede dos planos de saúde, suas consultas são mal remuneradas. Quantos pacientes um médico pode examinar por dia?
-Eu conheço melhor a medicina de clínica geral. Na minha opinião, um médico dá bom atendimento a 15 ou 20 pacientes por dia. Se a remuneração resultante desse número de consultas é insatisfatória, o médico acaba atendendo mais gente. Alguém está iludindo alguém. O plano de saúde está levando o médico a iludir o cliente de ambos. A primeira consulta leva mais tempo. As seguintes podem ser mais rápidas, e o médicos sempre podem dispor de assistentes e profissionais de saúde. Eu sou reumatologista. No meu consultório há casos que a enfermeira pode atender. Aí, voltamos ao ponto de partida. O paciente deve confiar nessa situação. Se não confia, se acha que o médico está se livrando dele ao mandá-lo para a enfermeira, deve se queixar a ele.
-O que se pode fazer para reduzir a amplitude da relação incestuosa que os laboratórios conseguem estabelecer com muitos médicos? No caso dos médicos que empurram marcas e não receitam genéricos, por exemplo?
-O paciente tem o direito de pedir o genérico, mas deve ter confiança suficiente no seu médico para aceitar sua opinião caso ele lhe diga que, num caso específico, a marca de laboratório é mais confiável que o genérico. Isso acontece, por exemplo, com alguns remédios cardiovasculares. Afora essa questão, nós temos a nossa ética. Ela diz que não devemos aceitar presentes que possam influenciar nossas decisões. Uma caneta certamente não influencia ninguém. Uma viagem a Paris com a família, hospedado num hotel perto do Arco do Triunfo, para um congresso de dois dias, é outra coisa. É pena, mas não podemos aceitar. Digo-lhe isso com o coração partido. Na semana passada eu recebi um convite para um congresso em Roma, numa área fora da minha especialidade. Tive que me desculpar, mas não vou. Três dias em Roma...


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