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Bolsa Família vira "moeda" em comércio
Em pelo menos 15 cidades, comerciantes retêm dos seus clientes o cartão do benefício como garantia de pagamento de débitos
Lojistas recebem senha e fazem o saque em bancos; esquema, considerado criminoso, é investigado pela CGU e Polícia Federal
FELIPE BÄCHTOLD
DA AGÊNCIA FOLHA
Cartões do programa Bolsa
Família estão substituindo as
cadernetas de dívidas em lojas
e mercados de pequenas cidades do país. Comerciantes têm
retido os cartões de beneficiários do programa e os utilizado
como garantia para o pagamento de débitos ou de prestações
nos estabelecimentos.
A prática já foi detectada em
pelo menos 15 cidades de dez
Estados. Em agosto, a proprietária de uma loja no interior do
Pará foi presa sob acusação de
reter cartões.
O esquema funciona da seguinte maneira: um beneficiário do Bolsa Família, em dívida
com o proprietário de um estabelecimento, deixa o cartão do
programa e a senha com o comerciante para quem deve. Ao
final de cada mês, o próprio comerciante é quem saca o benefício em uma instituição bancária ou no posto de recebimento.
O valor retirado é informalmente descontado da quantia
em débito.
Em uma variante da prática,
um cliente, ao fazer uma compra em prestações, entrega o
cartão e senha ao lojista como
garantia de que irá honrar as
parcelas seguintes.
Os dois modelos são considerados crime.
Recebem o benefício famílias
com filhos de até 16 anos incompletos e com renda mensal
de até R$ 120 por pessoa. O número de filhos e a renda determina o valor do pagamento. A
média é de R$ 72 por mês. O
programa atende a mais de 11
milhões de famílias.
Dinheiro certo
Em Concórdia do Pará (PA),
cidade de 24 mil habitantes,
uma comerciante foi encontrada com 54 cartões de beneficiários do programa há um mês,
segundo o Ministério Público
do Estado. Ela chegou a ser presa e deve responder processo
por crime de apropriação indébita, que prevê pena de um a
quatro anos de reclusão.
A promotora de Justiça Fábia Mussi, que detectou o problema na cidade, compara a retenção de cartões com as cadernetas de dívidas usados em
mercearias. "Antigamente [o
costume era pedir]: anota aí para mim, pendura. Agora a coisa
é mais organizada."
Mussi diz que a prática é disseminada pela cidade. "O risco
para o proprietário do estabelecimento é zero. É um dinheiro
certo", afirma.
Na cidade do Pará, a situação
passou a ser investigada após o
Conselho Tutelar local tomar
conhecimento do caso de uma
agricultora de 35 anos que entregou o documento como garantia de pagamento de dívidas. Ela tem seis filhos.
Índios
Em Barra do Garças (MT), o
proprietário de um restaurante
reteve cartões de índios xavantes para quitar dívidas, segundo
uma investigação da Polícia Federal. Além de documentos do
Bolsa Família, também foram
apreendidos em março no local
cartões de previdência. O suspeito deve responder processo
por estelionato.
Entre as cidades onde o problema foi detectado, Rancharia
(504 km de SP) tem o maior número de estabelecimentos que
se beneficiaram da prática
-quatro. Lojas de móveis e de
confecções retinham cartões
do programa como garantia para o pagamento de prestações.
A Secretaria de Assistência
Social do município diz que repreendeu os comerciantes no
ano passado, o que provocou a
extinção da prática.
Fiscalizações da CGU (Controladoria Geral da União) sobre a aplicação de recursos do
governo federal em municípios
encontraram o problema em
pelo menos outras dez cidades
de seis Estados nos últimos três
anos. Em três cidades, segundo
a CGU, os comerciantes suspeitos também administravam o
posto onde os benefícios do
programa são sacados.
Em Cruz das Almas, na Bahia, o dono de uma padaria suspeito de reter cartões disse aos
fiscais que "a prática é comum"
na região.
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