São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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Religioso diz que CNBB só condena preservativo por pressão da Santa Sé

DA REPORTAGEM LOCAL

Durante entrevista de duas horas à Folha, o padre Valeriano Paitoni recomendou a camisinha inclusive para católicos casados e tocou em temas que sacerdotes costumam discutir nos bastidores do clero, mas que quase nunca abordam publicamente.
Disse, por exemplo, que:
* a cúpula da CNBB aceita o uso de preservativos em certas circunstâncias e só adota discurso inflexível sobre o assunto porque sofre pressões do Vaticano;
* o arcebispo do Rio de Janeiro, d. Eugênio Sales, comanda uma igreja paralela à igreja oficialmente estabelecida no Brasil;
* seminários do país discriminam portadores do vírus da Aids.
Procurados para comentar as declarações do padre, d. Eugênio e os dirigentes da CNBB preferiram não se pronunciar.
(AA)

Folha - O Vaticano erra quando proíbe que os católicos usem a camisinha no combate à Aids?
Padre Valeriano Paitoni - Tenho certeza quase absoluta de que sim. Como no passado, a igreja ainda resiste às descobertas científicas. Deseja fazer valer sua posição em qualquer circunstância. Desde que a epidemia da Aids começou, o clero não soube se colocar no lugar certo. Quis ocupar o lugar dos cientistas. Enquanto a ciência nos educa e garante que o preservativo é uma das maneiras mais eficazes de proteção contra a doença, a igreja diz não. Fecha os olhos para provas científicas. Estamos mergulhados em um problema de saúde pública, e quem deve enfrentá-lo são as autoridades competentes. O Vaticano não pode atrapalhar. Diante do avanço do HIV, condenar a camisinha constitui um erro tão grave quanto os que atingiram negros e índios -populações que, recentemente, receberam do papa um pedido de perdão. No futuro, sem dúvida nenhuma, teremos de nos desculpar de novo pelos enganos cometidos em relação à Aids.

Folha - Qual seria, então, o papel da igreja na luta contra a doença?
Padre Valeriano -
Apoiar as recomendações científicas. Solidarizar-se com doentes e portadores do HIV. Orientar os fiéis para que defendam sempre a vida.

Folha - Católicos que admitem a camisinha costumam se escorar na "teoria do mal menor". Argumentam: entre a Aids e o preservativo, prefira o "mal menor". O que o senhor pensa desse raciocínio?
Padre Valeriano -
Não existe mal maior nem menor. Existe o mal e ponto. Se o preservativo protege a vida, não há por que o encarar como um mal menor. Trata-se, isso sim, de um bem maior -o único de que dispomos para driblar a Aids com segurança.

Folha - O Vaticano aponta a castidade e a fidelidade conjugal como alternativas à camisinha. Considera que, apoiando os preservativos, incentivaria uma sociedade que banaliza cada vez mais o sexo, que o toma por mercadoria.
Padre Valeriano -
Quando a igreja afirma que proíbe a camisinha para impedir o aumento da promiscuidade, está desvalorizando a capacidade humana de crescer, de conquistar os tesouros espirituais. Não é por causa do preservativo que alguém vai se tornar mais promíscuo. Essa concepção dá ouvidos à fraqueza humana, não à grandeza. E a função da igreja é confiar na humanidade, acreditar que o homem pode se transformar para o bem. Ao decidir nos salvar, Deus se fez carne da nossa carne. Por quê? Porque pretendia engrandecer a nossa humanidade. Não queria diminuir ou destruir nossa sexualidade. Queria, ao contrário, valorizar o ser humano em sua plenitude.
Cristo nos avisa com clareza: "Eu vim para que todos tenham vida". Em outras palavras, devemos defender a vida custe o que custar -e acima da lei, quando necessário. O apóstolo Paulo já nos ensinava: precisamos tomar cuidado, porque a lei é fonte de pecados. Nós, igreja, muitas vezes nos agarramos às leis e nos tornamos cegos diante da realidade. Defendemos a lei pela lei.

Folha - O senhor acha que não cabe à igreja pregar a castidade e a fidelidade conjugal?
Padre Valeriano -
Claro que cabe. Fidelidade e castidade são valores do reino de Deus, próprios da fé. Só que não podemos usá-los para frear uma pandemia. São valores eternos, que precisamos pregar constantemente e não apenas agora. Mas são bens que conquistamos aos poucos, que renovamos todos os dias. Devemos enxergá-los como uma meta a atingir, não como um remédio. Não se pode impor a fidelidade. Pode-se, no máximo, incentivá-la. Diante da Aids, não basta pregar os valores do reino de Deus. É necessário reconhecer que as pregações nem sempre têm eficácia imediata e que, portanto, não substituem métodos científicos capazes de assegurar a vida.

Folha - O senhor recomenda que até mesmo os católicos casados usem camisinha?
Padre Valeriano -
Para fazer frente à Aids, recomendo, sim. Conheço muitas mulheres católicas, casadas e fiéis, que pegaram o HIV dos maridos. A coerência nos obriga a admitir que a fidelidade não é algo que todo mundo vivencia. Ainda que a procure intensamente, um casal nem sempre a alcança. A própria igreja conta com isso, quando oferece o perdão àqueles que pecaram. O sacramento da reconciliação -que antigamente chamávamos de confissão- existe porque Deus sabe das fraquezas humanas. Ele prevê a queda.

Folha - O senhor também acredita que a igreja erra ao condenar o homossexualismo?
Padre Valeriano -
A igreja erra sempre que aponta o dedo e se posiciona como juiz. Cristo nos fala: "Não julgue para não ser julgado". Estou certo de que ninguém opta pela heterossexualidade ou pelo homossexualismo. A pessoa é o que é. Faz parte de sua estrutura física, psíquica. Precisamos começar a encarar as coisas a partir dessa realidade. A igreja não pode exigir que um homossexual "mude de lado". Mas pode ajudar tanto o gay quanto o heterossexual a viver dignamente, sem abdicar do sexo.

Folha - Existem seminários que pedem testes de Aids para aqueles que desejam ingressar na vida eclesiástica?
Padre Valeriano -
Existem. Há congregações e dioceses no Brasil que fazem tais exigências e impedem os soropositivos de entrar para os seminários. É uma discriminação inadmissível, que muitos preferem chamar cinicamente de "seleção".

Folha - O senhor conhece rapazes que tentaram se matricular em seminários e não conseguiram porque têm o vírus da Aids?
Padre Valeriano -
Conheço poucos, mas conheço.

Folha - Qual o nome dos seminários?
Padre Valeriano -
Não vou dizer. Não é ético.

Folha - Mas também não é ético que peçam o teste.
Padre Valeriano -
Claro que não. Só que o fato de cometerem um erro ético não me autoriza a cometer outro.

Folha - Na década de 80, quando o senhor passou a distribuir camisinhas para as populações carentes, d. Paulo Evaristo Arns dirigia a arquidiocese paulistana. Como seu superior, ele nunca o repreendeu?
Padre Valeriano -
Ele sempre soube, mas nunca se opôs. Acreditava na tese do "mal menor".

Folha - E o atual arcebispo, d. Cláudio Hummes?
Padre Valeriano -
Já tivemos uma conversa. Ele me chamou à arquidiocese. Queria explicações sobre minhas atitudes.

Folha - Ele o advertiu?
Padre Valeriano -
Não sei se me advertiu ou se desejava apenas conhecer melhor minhas posições. Foi no fim de janeiro, início de fevereiro, se não me engano. Ele me telefonou e me convocou. Não escondi nada. Expus minhas idéias sobre o preservativo com absoluta franqueza. A conversa correu serena, tranquila. Não senti um clima ameaçador. Expliquei as minhas razões, e ele reafirmou a visão oficial da igreja.

Folha - Ele pediu para o senhor deixar de distribuir camisinhas?
Padre Valeriano -
Não, apenas reafirmou a visão da igreja. Mas, indiretamente, é claro que estava me dizendo: "Você comete um erro quando insiste em pensar de maneira diferente". Ele trazia dois relatórios sobre mim. Um retratava uma entrevista que dei para o Jô Soares no ano passado. Era bem fiel: "Jô perguntou isso; padre Valeriano respondeu aquilo; a platéia reagiu assim". O outro abordava uma reunião de que participei em Brasília, também no ano passado. Só que quem o elaborou não reproduziu direito minhas intervenções. Não disse a verdade. Manipulou tudo.

Folha - A igreja tem "arapongas"? Há pessoas que observam o senhor?
Padre Valeriano -
Nos últimos quatro ou cinco anos, creio que sim. Quando estou em determinadas reuniões, acredito que haja sempre alguém de olho, reportando o que digo para a ala conservadora do clero.

Folha - O senhor integra a comissão da CNBB que concebeu um polêmico folheto sobre a Aids, divulgado recentemente em Itaici (SP), num seminário que tratava da doença . O texto preconiza a castidade "antes e durante o matrimônio", mas recomenda o uso da camisinha para aqueles que "não aceitam esses ideais ou têm dificuldade de vivê-los". A direção da CNBB aprovou o panfleto?
Padre Valeriano -
A comissão -formada por nove pessoas, entre padres, freiras e leigos- elaborou o folheto e o mandou para a conferência dos bispos com a recomendação de que fossem feitas correções. O texto final, portanto, foi aprovado pela CNBB.

Folha - No encontro de Itaici, porém, a direção da CNBB produziu uma nota desaconselhando os preservativos em qualquer situação. Contrariou, assim, as afirmações do folheto. Por quê?
Padre Valeriano -
Porque sofreu pressão de Roma. O Vaticano forçou a CNBB a rever a questão, e a CNBB recuou.

Folha - Qual dos dois textos espelha melhor o que a cúpula da CNBB pensa sobre a camisinha: o folheto ou a nota?
Padre Valeriano -
O folheto.

Folha - A igreja conservadora está ganhando espaço no Brasil, após um período de recolhimento?
Padre Valeriano -
Vem crescendo muito, sim. Na verdade, há uns oito, dez anos, está se definindo como uma igreja paralela à CNBB, o que me preocupa bastante. A ala conservadora não se limita ao pensamento de uma diocese, de um bispo, de um padre. É uma estrutura paralela mesmo, que se articula de maneira concreta e se opõe à CNBB, mais progressista e juridicamente estabelecida como a igreja oficial do país.

Folha - Quem lidera essa igreja paralela?
Padre Valeriano -
Todo mundo sabe que é d. Eugênio Sales, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro. Ele articula, realiza reuniões periódicas, divulga documentos. Faz ingerências em Roma para a nomeação de bispos da ala conservadora no Brasil. Só um cego não vê essas coisas. O conservadorismo em si não é um mal, mas se torna ruim quando se organiza para destruir um outro setor, que pensa de modo diferente. Os conservadores amarram-se mais à lei do que à vida. A igreja tradicional precisa de leis bem definidas. Sua segurança é a lei. Já a segurança da igreja progressista é a vida, é trabalhar em busca da plena dignidade humana. Para conservar algo, você necessita de leis -inclusive daquelas que regulamentam as relações sexuais. Agora, para crescer, para se expandir, você não precisa de muitas leis, porque a lei o obriga a permanecer fechado dentro de um certo recinto.

O senhor não teme sofrer punições por se opor tão frontalmente às opiniões do Vaticano?
Padre Valeriano -
Não, porque quem vai me julgar é Deus. Não tenho medo das punições humanas. Penso que obediência é diálogo, não é submissão, como querem muitas autoridades da igreja. Não fiz voto de submissão. Fiz voto de obediência à minha vocação. Creio firmemente que a defesa da vida não admite a covardia.


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