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Religioso diz que CNBB só condena preservativo por pressão da Santa Sé
DA REPORTAGEM LOCAL
Durante entrevista de duas horas à Folha, o padre Valeriano
Paitoni recomendou a camisinha
inclusive para católicos casados e
tocou em temas que sacerdotes
costumam discutir nos bastidores
do clero, mas que quase nunca
abordam publicamente.
Disse, por exemplo, que:
* a cúpula da CNBB aceita o uso
de preservativos em certas circunstâncias e só adota discurso
inflexível sobre o assunto porque
sofre pressões do Vaticano;
* o arcebispo do Rio de Janeiro,
d. Eugênio Sales, comanda uma
igreja paralela à igreja oficialmente estabelecida no Brasil;
* seminários do país discriminam portadores do vírus da Aids.
Procurados para comentar as
declarações do padre, d. Eugênio
e os dirigentes da CNBB preferiram não se pronunciar.
(AA)
Folha - O Vaticano erra quando
proíbe que os católicos usem a camisinha no combate à Aids?
Padre Valeriano Paitoni - Tenho
certeza quase absoluta de que sim.
Como no passado, a igreja ainda
resiste às descobertas científicas.
Deseja fazer valer sua posição em
qualquer circunstância. Desde
que a epidemia da Aids começou,
o clero não soube se colocar no lugar certo. Quis ocupar o lugar dos
cientistas. Enquanto a ciência nos
educa e garante que o preservativo é uma das maneiras mais eficazes de proteção contra a doença, a
igreja diz não. Fecha os olhos para
provas científicas. Estamos mergulhados em um problema de
saúde pública, e quem deve enfrentá-lo são as autoridades competentes. O Vaticano não pode
atrapalhar. Diante do avanço do
HIV, condenar a camisinha constitui um erro tão grave quanto os
que atingiram negros e índios
-populações que, recentemente,
receberam do papa um pedido de
perdão. No futuro, sem dúvida
nenhuma, teremos de nos desculpar de novo pelos enganos cometidos em relação à Aids.
Folha - Qual seria, então, o papel
da igreja na luta contra a doença?
Padre Valeriano - Apoiar as recomendações científicas. Solidarizar-se com doentes e portadores
do HIV. Orientar os fiéis para que
defendam sempre a vida.
Folha - Católicos que admitem a
camisinha costumam se escorar na
"teoria do mal menor". Argumentam: entre a Aids e o preservativo,
prefira o "mal menor". O que o senhor pensa desse raciocínio?
Padre Valeriano - Não existe mal
maior nem menor. Existe o mal e
ponto. Se o preservativo protege a
vida, não há por que o encarar como um mal menor. Trata-se, isso
sim, de um bem maior -o único
de que dispomos para driblar a
Aids com segurança.
Folha - O Vaticano aponta a castidade e a fidelidade conjugal como
alternativas à camisinha. Considera que, apoiando os preservativos,
incentivaria uma sociedade que
banaliza cada vez mais o sexo, que
o toma por mercadoria.
Padre Valeriano - Quando a igreja afirma que proíbe a camisinha
para impedir o aumento da promiscuidade, está desvalorizando
a capacidade humana de crescer,
de conquistar os tesouros espirituais. Não é por causa do preservativo que alguém vai se tornar
mais promíscuo. Essa concepção
dá ouvidos à fraqueza humana,
não à grandeza. E a função da
igreja é confiar na humanidade,
acreditar que o homem pode se
transformar para o bem. Ao decidir nos salvar, Deus se fez carne
da nossa carne. Por quê? Porque
pretendia engrandecer a nossa
humanidade. Não queria diminuir ou destruir nossa sexualidade. Queria, ao contrário, valorizar
o ser humano em sua plenitude.
Cristo nos avisa com clareza:
"Eu vim para que todos tenham
vida". Em outras palavras, devemos defender a vida custe o que
custar -e acima da lei, quando
necessário. O apóstolo Paulo já
nos ensinava: precisamos tomar
cuidado, porque a lei é fonte de
pecados. Nós, igreja, muitas vezes
nos agarramos às leis e nos tornamos cegos diante da realidade.
Defendemos a lei pela lei.
Folha - O senhor acha que não cabe à igreja pregar a castidade e a fidelidade conjugal?
Padre Valeriano - Claro que cabe.
Fidelidade e castidade são valores
do reino de Deus, próprios da fé.
Só que não podemos usá-los para
frear uma pandemia. São valores
eternos, que precisamos pregar
constantemente e não apenas
agora. Mas são bens que conquistamos aos poucos, que renovamos todos os dias. Devemos enxergá-los como uma meta a atingir, não como um remédio. Não
se pode impor a fidelidade. Pode-se, no máximo, incentivá-la.
Diante da Aids, não basta pregar
os valores do reino de Deus. É necessário reconhecer que as pregações nem sempre têm eficácia
imediata e que, portanto, não
substituem métodos científicos
capazes de assegurar a vida.
Folha - O senhor recomenda que
até mesmo os católicos casados
usem camisinha?
Padre Valeriano - Para fazer
frente à Aids, recomendo, sim.
Conheço muitas mulheres católicas, casadas e fiéis, que pegaram o
HIV dos maridos. A coerência
nos obriga a admitir que a fidelidade não é algo que todo mundo
vivencia. Ainda que a procure intensamente, um casal nem sempre a alcança. A própria igreja
conta com isso, quando oferece o
perdão àqueles que pecaram. O
sacramento da reconciliação
-que antigamente chamávamos
de confissão- existe porque
Deus sabe das fraquezas humanas. Ele prevê a queda.
Folha - O senhor também acredita que a igreja erra ao condenar o
homossexualismo?
Padre Valeriano - A igreja erra
sempre que aponta o dedo e se
posiciona como juiz. Cristo nos
fala: "Não julgue para não ser julgado". Estou certo de que ninguém opta pela heterossexualidade ou pelo homossexualismo. A
pessoa é o que é. Faz parte de sua
estrutura física, psíquica. Precisamos começar a encarar as coisas a
partir dessa realidade. A igreja
não pode exigir que um homossexual "mude de lado". Mas pode
ajudar tanto o gay quanto o heterossexual a viver dignamente,
sem abdicar do sexo.
Folha - Existem seminários que
pedem testes de Aids para aqueles
que desejam ingressar na vida
eclesiástica?
Padre Valeriano - Existem. Há
congregações e dioceses no Brasil
que fazem tais exigências e impedem os soropositivos de entrar
para os seminários. É uma discriminação inadmissível, que muitos preferem chamar cinicamente
de "seleção".
Folha - O senhor conhece rapazes
que tentaram se matricular em seminários e não conseguiram porque têm o vírus da Aids?
Padre Valeriano - Conheço poucos, mas conheço.
Folha - Qual o nome dos seminários?
Padre Valeriano - Não vou dizer.
Não é ético.
Folha - Mas também não é ético
que peçam o teste.
Padre Valeriano - Claro que não.
Só que o fato de cometerem um
erro ético não me autoriza a cometer outro.
Folha - Na década de 80, quando
o senhor passou a distribuir camisinhas para as populações carentes,
d. Paulo Evaristo Arns dirigia a arquidiocese paulistana. Como seu
superior, ele nunca o repreendeu?
Padre Valeriano - Ele sempre
soube, mas nunca se opôs. Acreditava na tese do "mal menor".
Folha - E o atual arcebispo, d.
Cláudio Hummes?
Padre Valeriano - Já tivemos
uma conversa. Ele me chamou à
arquidiocese. Queria explicações
sobre minhas atitudes.
Folha - Ele o advertiu?
Padre Valeriano - Não sei se me
advertiu ou se desejava apenas conhecer melhor minhas posições.
Foi no fim de janeiro, início de fevereiro, se não me engano. Ele me
telefonou e me convocou. Não escondi nada. Expus minhas idéias
sobre o preservativo com absoluta franqueza. A conversa correu
serena, tranquila. Não senti um
clima ameaçador. Expliquei as
minhas razões, e ele reafirmou a
visão oficial da igreja.
Folha - Ele pediu para o senhor
deixar de distribuir camisinhas?
Padre Valeriano - Não, apenas
reafirmou a visão da igreja. Mas,
indiretamente, é claro que estava
me dizendo: "Você comete um erro quando insiste em pensar de
maneira diferente". Ele trazia dois
relatórios sobre mim. Um retratava uma entrevista que dei para o
Jô Soares no ano passado. Era
bem fiel: "Jô perguntou isso; padre Valeriano respondeu aquilo; a
platéia reagiu assim". O outro
abordava uma reunião de que
participei em Brasília, também no
ano passado. Só que quem o elaborou não reproduziu direito minhas intervenções. Não disse a
verdade. Manipulou tudo.
Folha - A igreja tem "arapongas"? Há pessoas que observam o
senhor?
Padre Valeriano - Nos últimos
quatro ou cinco anos, creio que
sim. Quando estou em determinadas reuniões, acredito que haja
sempre alguém de olho, reportando o que digo para a ala conservadora do clero.
Folha - O senhor integra a comissão da CNBB que concebeu um polêmico folheto sobre a Aids, divulgado recentemente em Itaici (SP),
num seminário que tratava da
doença . O texto preconiza a castidade "antes e durante o matrimônio", mas recomenda o uso da camisinha para aqueles que "não
aceitam esses ideais ou têm dificuldade de vivê-los". A direção da
CNBB aprovou o panfleto?
Padre Valeriano - A comissão
-formada por nove pessoas, entre padres, freiras e leigos- elaborou o folheto e o mandou para
a conferência dos bispos com a recomendação de que fossem feitas
correções. O texto final, portanto,
foi aprovado pela CNBB.
Folha - No encontro de Itaici, porém, a direção da CNBB produziu
uma nota desaconselhando os preservativos em qualquer situação.
Contrariou, assim, as afirmações
do folheto. Por quê?
Padre Valeriano - Porque sofreu
pressão de Roma. O Vaticano forçou a CNBB a rever a questão, e a
CNBB recuou.
Folha - Qual dos dois textos espelha melhor o que a cúpula da CNBB
pensa sobre a camisinha: o folheto
ou a nota?
Padre Valeriano - O folheto.
Folha - A igreja conservadora está ganhando espaço no Brasil, após
um período de recolhimento?
Padre Valeriano - Vem crescendo muito, sim. Na verdade, há uns
oito, dez anos, está se definindo
como uma igreja paralela à
CNBB, o que me preocupa bastante. A ala conservadora não se
limita ao pensamento de uma
diocese, de um bispo, de um padre. É uma estrutura paralela
mesmo, que se articula de maneira concreta e se opõe à CNBB,
mais progressista e juridicamente
estabelecida como a igreja oficial
do país.
Folha - Quem lidera essa igreja
paralela?
Padre Valeriano - Todo mundo
sabe que é d. Eugênio Sales, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro.
Ele articula, realiza reuniões periódicas, divulga documentos.
Faz ingerências em Roma para a
nomeação de bispos da ala conservadora no Brasil. Só um cego
não vê essas coisas. O conservadorismo em si não é um mal, mas
se torna ruim quando se organiza
para destruir um outro setor, que
pensa de modo diferente. Os conservadores amarram-se mais à lei
do que à vida. A igreja tradicional
precisa de leis bem definidas. Sua
segurança é a lei. Já a segurança da
igreja progressista é a vida, é trabalhar em busca da plena dignidade humana. Para conservar algo, você necessita de leis -inclusive daquelas que regulamentam
as relações sexuais. Agora, para
crescer, para se expandir, você
não precisa de muitas leis, porque
a lei o obriga a permanecer fechado dentro de um certo recinto.
O senhor não teme sofrer punições por se opor tão frontalmente
às opiniões do Vaticano?
Padre Valeriano - Não, porque
quem vai me julgar é Deus. Não
tenho medo das punições humanas. Penso que obediência é diálogo, não é submissão, como querem muitas autoridades da igreja.
Não fiz voto de submissão. Fiz voto de obediência à minha vocação. Creio firmemente que a defesa da vida não admite a covardia.
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