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ARTIGO
"Estamos todos de acordo, isso é uma vergonha mesmo"
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Roberto Jefferson está prestando depoimento na condição de
testemunha ou de investigado? Às
21h30 de quinta-feira, a tecnicalidade regimental consumia as
atenções dos participantes da CPI
dos Correios.
A questão, no fundo, era outra.
Tratava-se de saber se Roberto
Jefferson era um novo herói da
moralidade pública -quase a isso chegaram as intervenções de
parlamentares respeitáveis, como
Jefferson Peres (PDT), Pedro Simon (PMDB) e Eduardo Suplicy
(PT) -ou alguém que, pego com
a boca na botija, tentou simplesmente se safar do escândalo atacando a cúpula do PT.
O curioso, o sensacional em Roberto Jefferson, é que ele sabe incorporar as duas condições -de
réu e de inocente- conforme o
momento e a conveniência da argumentação. Assim, acusa todos
os parlamentares de apresentarem dados incorretos sobre os
gastos de campanha. Sua acusação se legitima porque admite fazer o mesmo. Denuncia o loteamento de cargos nas estatais, e o
faz com pleno conhecimento de
causa. Ai de quem se disser mais
inocente -ou menos culpado-
do que ele. Qualquer atuação
"não-republicana", para usar as
palavras do próprio Jefferson, se
transforma, diabolicamente, em
sinal de veracidade, transparência
e virtude cívica.
Na sessão de anteontem da CPI,
o petebista parecia trazer esse paradoxo estampado no próprio
rosto: nocauteando seguidas vezes os seus adversários, era ele
quem estava de olho roxo, recebendo cuidados médicos.
A audácia com que navega no
atual mar de lama o imunizou
bastante dos ataques que foi recebendo ao longo da sessão, fossem
eles toscos (Maurício Rands, do
PT) ou articulados (José Eduardo
Cardozo, também do PT). Jefferson deu-se ao luxo de conceder
atestados de idoneidade a diversos de seus interrogadores. Mas
tudo indica que poderia, se quisesse, destruí-los com boa carga
de novas denúncias e "ilações",
para usar o termo da moda.
A própria imprensa se vê julgada: na tribuna da CPI, o acusado
de liderar um esquema de propinas nos Correios analisa reportagens, lê entrelinhas, detecta fontes
espúrias a orientar revistas e jornais, desmontando o que diz ser
uma máquina de achincalhe público contra a sua pessoa. Por esse
mesmo raciocínio, entretanto,
Delúbio Soares poderia invocar o
papel de vítima.
Aí reside o ineditismo da atual
situação política, se comparada às
temporadas de escândalos do
passado. Antigamente, havia um
"partido da moralidade" lutando
contra o descalabro. Agora, quando os que tinham fama de limpos
se mostram sujos, os supostamente sujos -que já não tinham
nada a perder- terminam entoando um cântico angelical:
"Sim, estamos todos de acordo,
isto aqui é uma vergonha mesmo...".
O lado "construtivo" da atuação
de Jefferson tem, assim, algo de
inócuo. Seu mérito, concordam
todos, foi o de desvelar todo um
sistema de aparelhamento do Estado, apontando para a necessidade de repensar esse modelo.
Mas como? Sendo frontalmente
contrário ao financiamento público de campanhas, Jefferson
não apresentou sugestões muito
fortes nesse sentido. Ele reclama
que as doações de empresários a
campanhas eleitorais são feitas na
surdina porque, se fossem abertas
e transparentes, a imprensa se encarregaria de "escrachar" todas as
atitudes dos políticos, mostrando
que agem a serviço de interesses
privados. Paradoxalmente, então,
uma hipotética imprensa sem denuncismo seria -para esse mago
das denúncias públicas- condição básica para a moralização política.
O lado "destrutivo" de Roberto
Jefferson é obviamente mais forte,
e se dirige ao campo dos acertos
de que ele próprio participou.
Mas, nesse mundo das investigações concretas, é também possível
investigar melhor as conexões de
Jefferson nos Correios. A tropa de
choque do PT insiste nisso, mas
suas inquirições na CPI foram incapazes de reverter o quadro.
Ocorre que desqualificar o petebista não funciona perante a opinião pública e, cá entre nós, não
traria grande novidade frente a
tudo o que o próprio Jefferson admite ter feito. Nesse quadro, a
única coisa que se destaca negativamente é o empenho governista
em tapar o sol com a peneira.
Quem se desqualifica são os parlamentares do PT, entregues a um
papel feio, inusitado, deprimente
de assistir, quando se pensava na
fúria, no empenho moralizador,
no incondicionalismo ético que,
ao longo de mais de 20 anos, encarnaram no cenário político brasileiro.
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