São Paulo, sábado, 02 de julho de 2005

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ARTIGO

"Estamos todos de acordo, isso é uma vergonha mesmo"

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Roberto Jefferson está prestando depoimento na condição de testemunha ou de investigado? Às 21h30 de quinta-feira, a tecnicalidade regimental consumia as atenções dos participantes da CPI dos Correios.
A questão, no fundo, era outra. Tratava-se de saber se Roberto Jefferson era um novo herói da moralidade pública -quase a isso chegaram as intervenções de parlamentares respeitáveis, como Jefferson Peres (PDT), Pedro Simon (PMDB) e Eduardo Suplicy (PT) -ou alguém que, pego com a boca na botija, tentou simplesmente se safar do escândalo atacando a cúpula do PT.
O curioso, o sensacional em Roberto Jefferson, é que ele sabe incorporar as duas condições -de réu e de inocente- conforme o momento e a conveniência da argumentação. Assim, acusa todos os parlamentares de apresentarem dados incorretos sobre os gastos de campanha. Sua acusação se legitima porque admite fazer o mesmo. Denuncia o loteamento de cargos nas estatais, e o faz com pleno conhecimento de causa. Ai de quem se disser mais inocente -ou menos culpado- do que ele. Qualquer atuação "não-republicana", para usar as palavras do próprio Jefferson, se transforma, diabolicamente, em sinal de veracidade, transparência e virtude cívica.
Na sessão de anteontem da CPI, o petebista parecia trazer esse paradoxo estampado no próprio rosto: nocauteando seguidas vezes os seus adversários, era ele quem estava de olho roxo, recebendo cuidados médicos.
A audácia com que navega no atual mar de lama o imunizou bastante dos ataques que foi recebendo ao longo da sessão, fossem eles toscos (Maurício Rands, do PT) ou articulados (José Eduardo Cardozo, também do PT). Jefferson deu-se ao luxo de conceder atestados de idoneidade a diversos de seus interrogadores. Mas tudo indica que poderia, se quisesse, destruí-los com boa carga de novas denúncias e "ilações", para usar o termo da moda.
A própria imprensa se vê julgada: na tribuna da CPI, o acusado de liderar um esquema de propinas nos Correios analisa reportagens, lê entrelinhas, detecta fontes espúrias a orientar revistas e jornais, desmontando o que diz ser uma máquina de achincalhe público contra a sua pessoa. Por esse mesmo raciocínio, entretanto, Delúbio Soares poderia invocar o papel de vítima.
Aí reside o ineditismo da atual situação política, se comparada às temporadas de escândalos do passado. Antigamente, havia um "partido da moralidade" lutando contra o descalabro. Agora, quando os que tinham fama de limpos se mostram sujos, os supostamente sujos -que já não tinham nada a perder- terminam entoando um cântico angelical: "Sim, estamos todos de acordo, isto aqui é uma vergonha mesmo...".
O lado "construtivo" da atuação de Jefferson tem, assim, algo de inócuo. Seu mérito, concordam todos, foi o de desvelar todo um sistema de aparelhamento do Estado, apontando para a necessidade de repensar esse modelo. Mas como? Sendo frontalmente contrário ao financiamento público de campanhas, Jefferson não apresentou sugestões muito fortes nesse sentido. Ele reclama que as doações de empresários a campanhas eleitorais são feitas na surdina porque, se fossem abertas e transparentes, a imprensa se encarregaria de "escrachar" todas as atitudes dos políticos, mostrando que agem a serviço de interesses privados. Paradoxalmente, então, uma hipotética imprensa sem denuncismo seria -para esse mago das denúncias públicas- condição básica para a moralização política.
O lado "destrutivo" de Roberto Jefferson é obviamente mais forte, e se dirige ao campo dos acertos de que ele próprio participou. Mas, nesse mundo das investigações concretas, é também possível investigar melhor as conexões de Jefferson nos Correios. A tropa de choque do PT insiste nisso, mas suas inquirições na CPI foram incapazes de reverter o quadro.
Ocorre que desqualificar o petebista não funciona perante a opinião pública e, cá entre nós, não traria grande novidade frente a tudo o que o próprio Jefferson admite ter feito. Nesse quadro, a única coisa que se destaca negativamente é o empenho governista em tapar o sol com a peneira. Quem se desqualifica são os parlamentares do PT, entregues a um papel feio, inusitado, deprimente de assistir, quando se pensava na fúria, no empenho moralizador, no incondicionalismo ético que, ao longo de mais de 20 anos, encarnaram no cenário político brasileiro.


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