São Paulo, sexta-feira, 02 de dezembro de 2005

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ARTIGO

Cassação de Dirceu virou episódio menor

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

José Dirceu tentou sobreviver o quanto pôde. Mas a importância do seu caso já tinha, melancolicamente, morrido há um bom tempo. A crise prossegue como antes: próxima de um desfecho que nunca chega, com todos os seus participantes caindo pelas tabelas antes do término da corrida.
O mais humilhante, para José Dirceu, é que sua cassação tornou-se um episódio menor em todo o processo. O foco das denúncias mudou e o "caso Dirceu" já parece notícia requentada ao chegar, finalmente, a um desenlace nada retumbante. A imagem de burocrata, de autoritário, de stalinista, que tantas vezes ficou associada ao ex-chefe da Casa Civil, cobrou um preço cruel: José Dirceu não foi capaz de comover ninguém, e seu discurso final, embora enfático, parecia ainda frio, opaco, cinzento.
Em parte, os recursos protelatórios a que Dirceu se dedicou nos últimos meses tiveram o efeito de diminuir a dramaticidade, e mesmo o significado político, de seu martírio. No começo, parecia o contrário: quanto mais irritante e tenaz fosse a sua resistência, mais o interesse punitivo da sociedade se concentraria na pessoa do deputado, tomando-o como símbolo de todo o colapso moral do atual governo. José Dirceu seria a grande vítima, uma espécie de sacrificado heróico cujo destino esgotaria, com sangue e lágrimas, o essencial da crise do "mensalão". O problema é que suas manobras duraram demais, assemelhando-se excessivamente à pura chicana processual, fazendo com que o caso terminasse sem suscitar muito mais que tédio e impaciência.
O governo se afastou de José Dirceu, e com isso enfraqueceu-se ainda mais a idéia de que era "um projeto para o Brasil" o que estava sendo atingido em sua pessoa. Não que a tese valesse muito, já que não havia projeto de esquerda nenhum nas alianças do PT com o PL e o PTB, por exemplo. Valia menos ainda a idéia de que era "a sua história pessoal" que estava sendo atacada. José Dirceu não foi cassado por suas relações com Che Guevara e Fidel Castro e sim por suas relações com Marcos Valério e Valdemar Costa Neto. O descrédito aumentou também num terceiro aspecto: ficava pouco convincente dizer que não havia provas materiais contra ele, se por mais de um momento a estratégia junto ao Supremo Tribunal Federal foi a de retirar do relatório as evidências que o incriminavam. "Não há provas, mas as que porventura existirem não valem."


Dirceu não foi cassado por suas relações com Che Guevara e Fidel Castro e sim por suas relações com Marcos Valério e Valdemar Costa Neto

O Supremo sai um tanto arranhado do episódio. A decisão de tirar partes do relatório de Júlio Delgado -consistente e equilibrado, afinal de contas- pareceu uma interferência indevida no Legislativo, como se um professor implicante devolvesse a todo o tempo os trabalhos de um aluno desleixado. Só que no fim o aluno passa de ano, e o processo de cassação segue adiante. Institucionalmente, tudo faria mais sentido, creio, se depois da cassação o Supremo se pronunciasse a respeito da validade constitucional da decisão; aparecer a todo momento, refazendo e modificando os atos de um outro poder autônomo, enquanto este desempenha suas funções segundo rituais e normas próprias, é precedente dos mais perigosos.
A crise do "mensalão" vai acabando por desinteresse, por cansaço, pelo desgaste de revelações que não têm ido muito longe e ao mesmo tempo se estendem pela imensurável planície do caradurismo governamental. Vai desembocando sem pressa na simples disputa sucessória, sem que, a esta altura, a cassação de todos os envolvidos ajude a sanear o ambiente. E isso vale para Zé Dirceu também: antes mesmo de cair, já estava muito perto da vala comum; as pessoas que estavam prontas a gritar caso tudo terminasse em pizza, estão contentes porque não houve pizza, mas de algum modo já tinham abandonado a mesa do jantar. Sobram os tipos indignados de bengala, para que José Dirceu continue a dizer que foi linchado, mas a raiva já passara para a maioria, cumprindo o caminho, ainda mais cruel, no rumo do desencanto, e deste para a indiferença.


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