São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

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Elio Gaspari

Hillary, Obama e a virtude das primárias


Um dia prevalecerá no Brasil a prática da realização de prévias para a escolha de candidatos

ANTES QUE SE SAIBA o resultado do desfile das escolas, vai-se saber quem prevaleceu na disputa entre Hillary Clinton e Barack Obama na grande prévia de 22 Estados americanos. Se o Padre Eterno ajudar, um dia funcionará no Brasil a idéia (já absorvida pelo PT) de realizar prévias para a escolha de seus candidatos. O debate de quinta-feira na Califórnia mostrou como essa modalidade de democracia direta disciplina os candidatos, civiliza a agenda e enobrece o eleitor. Os americanos transformaram um processo de convenções de coronéis numa saudável instituição. Levaram quase 50 anos para conseguir isso, mas o resultado está aí.
Durante duas horas, Clinton e Obama discutiram a questão dos planos de saúde com mais clareza, independência e preparo que todas as autoridades brasileiras nos últimos dez anos. Isso num país que está em guerra, com a recessão batendo à porta.
Entrou-se naquele auditório onde se festejam os Oscars com a idéia de que Obama é vazio e Hillary é uma jararaca. Ela foi uma craque e quem a viu gostaria de tê-la em casa para jantar. Ele mostrou que sabe do que fala. Os dois cresceram. Ela pode ter se saído melhor, mostrando-se mais articulada, mas isso não garante muita coisa. Falta ainda muito chão para se saber se ela derrota Obama ou se os dois podem formar uma chapa de ouro, com ele na vice. Suas propostas ainda ficaram vagas. Nenhum dos dois disse como pretende sair do Iraque, nem como conseguirá um consenso para lidar com os imigrantes sem documento, mas ofereceram aos eleitores o essencial: a sensação de que se pode confiar neles.
Com seu sorriso de Paulinho da Viola e o porte de Ataulfo Alves, Barack Obama terá uma caminhada morro acima, obrigado a botar musculatura na sua plataforma. Para se ver o tamanho da vantagem que acumulou, até hoje, ninguém achou que pode ganhar dinheiro vendendo papel higiênico com o seu rosto estampado. O de Hillary Clinton custa US$ 7.
Se os partidos brasileiros começarem a trabalhar amanhã na montagem de um processo de primárias para a escolha de seus candidatos, haverá um período de maracutaias e manipulações, mas inevitavelmente vai-se chegar a um sistema melhor que o atual. Exemplo disso é a relativa perda de influência do comissariado petista nas decisões do partido. Os vícios sobrevivem, mas a máquina é obrigada a disfarçá-los. Já é alguma coisa, sobretudo quando se vê que os tucanos continuam praticando sua democracia gastronômica. Havendo uma divergência, os caciques jantam e marcham para a traição, ou para a derrota.

O PODER DOS SÁBIOS DO PLANALTO É IMENSO

Em fevereiro de 2004, quando o governo começava a sair do aperto econômico do ano anterior, corriam no Congresso as primeiras histórias de que um deputado se recusara a aceitar uma mesada oferecida pelo comissariado petista. Em setembro, apareceu na imprensa uma palavra nova: "mensalão".
Os çábios do Planalto não fizeram nada. Nosso Guia recuperara popularidade e, portanto, não havia o que temer. Veio a tempestade. Lula reelegeu-se e hoje tem um inédito apoio popular. A ministra Matilde Ribeiro só foi mandada embora porque arriscava provocar a instalação de uma CPI, não porque usou o cartão da Viúva para alugar carro e pagar conta de hotel durante as férias. A dupla Lobão-Lobinho honra o ministério e o Senado. Os comissários da Brasil Telecom e os marqueses da Telemar/Oi podem fazer o que bem entendem. O processo do mensalão pode ser abafado por factóides. A Comissão de Ética da Presidência pode ser transformada em casa de lanches.
Como em 2004, os sábios pensam que podem tudo, mas fazem a agenda que a oposição botará na avenida em 2010.

CARNAVAL
Recomendação para quem for apanhado com uma camisinha na bolsa ou na carteira: ao contrário do que se pode pensar, ela pode ser conveniente para alguém que, por algum motivo, seja convidado para falar diante de um microfone.
Essa utilidade do objeto foi descoberta por John Lennon ao gravar "Yellow Submarine". Ele passou uma camisinha no microfone e gostou do efeito sonoro. Pode não ser convincente, mas é uma explicação melhor do que a história da empregada doméstica que laranjou a empresa na qual Edinho Lobinho era sócio.

JUÍZO
O comissariado do Planalto não deve se esquecer do que disse a ministra Marina Silva há um ano, quando sua colega Dilma Rousseff queria degolá-la: "Eu perco o pescoço, mas não perco o juízo".

INTERNACIONALISMO
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, quer que sua guilda proponha a criação de um tribunal internacional para discutir a questão da Amazônia, em busca de "soluções definitivas para que este patrimônio do Brasil e da humanidade não desapareça". Ouvir a opinião dos outros é uma coisa. Brincar de tribunal, bem outra. Se o doutor ou qualquer outro membro do conselho quiser isso (ou seu contrário), é um direito de cada um deles. Supor que uma Ordem de Advogados tenha competência para isso é um despropósito. Por falar em internacionalização, os madeireiros podiam sugerir que a OAB discutisse a abertura do mercado brasileiro a advogados inscritos em quaisquer corporações similares, diplomados em outros países.

RECORDAR É VIVER
Chateado com os protestos internacionais diante do desmatamento da Amazônia, Nosso Guia teve um surto de xenofobia e anunciou: "Topo brigar com essas ONGs por causa disso. Vão plantar árvores no país deles". Certamente esqueceu-se do dia 17 de maio de 1975, quando era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e comandava a greve da Scania, passou bom tempo ao telefone recebendo telefonemas de solidariedade de sindicatos estrangeiros. Entre eles a Union of Automobiles Workers, dos Estados Unidos. Dias depois, sindicatos alemães e a Federação dos Metalúrgicos da Suécia toparam entrar na sua briga. À época, ele achava bonito que irrigassem greves em Pindorama.

CASA DA SOGRA
Em Pernambuco, há os Cavalcantis e há os Cavalgados. No mundo globalizado dos laboratórios farmacêuticos, há os mercados que merecem respeito e os que recebem desdita.
O Eli Lilly está negociando um acordo de US$ 1 bilhão com o governo para se livrar de um processo por ter encorajado a comercialização do remédio Zyprexa entre 2000 e 2003 para idosos que padeciam de demência. Nesses casos, ele pouco adiantava e provocava danos à saúde. O laboratório já pagou US$ 1,2 bilhão a 30 mil vítimas. No Brasil, onde o remédio também foi vendido com propaganda enganosa, nada. Em 2004, o Merck orgulhou-se de ter retirado do mercado mundial o antiinflamatório Vioxx, pois ele foi associado a distúrbios cardiovasculares. No Brasil, quem apresentou suas caixas com o remédio, recebeu seu dinheiro de volta. Nos Estados Unidos, foi oferecido um acordo de US$ 4,85 bilhões às vítimas da droga.


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